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Advocacia e segurança jurídica no metaverso

direito e ambiente jurídico no metaverso

Isabel Hering*
Cecília Alberton Coutinho Silva*

Apesar de o termo metaverso ter ganhado notoriedade com a mudança do nome do Facebook para Meta em outubro de 2021, a ideia de um “metaverso” surgiu, pela primeira vez, na obra “Snow Crash” de Neal Stephenson, publicada em 1992. 

Snow Crash retrata o caos do mundo online como extensão do mundo real no início da revolução digital, habitado por avatares e seus usuários, a partir da propagação de um vírus online (o “Snow Crash”) comercializado nesse espaço de realidade aumentada – que passou a ser conhecido como metaverso. 

Muito mais do que trazer a percepção sobre a possibilidade de viver em uma realidade virtual e paralela, a obra retrata a falta de privacidade na internet e as ameaças à liberdade do ser humano. 

De 1992 até os dias atuais, passamos por, pelo menos, duas Revoluções: 

  • A terceira Revolução Industrial (ou Revolução 3.0), que ficou conhecida como Revolução Digital, por ter sua característica centralizada na utilização maciça de computadores e no acesso à rede de alcance mundial (“World Wide Web”); 
  • E a quarta Revolução Industrial (ou Revolução 4.0), que marcou o início do século XXI a partir do desenvolvimento exponencial e disseminação de tecnologias disruptivas. Em decorrência dos avanços viabilizados pela Revolução 4.0 em matéria de tecnologia, o metaverso encontrou espaço para crescer. 

Metaverso e os games

Em 2003, inspirado em Snow Crash, o Linden Lab lançou no mercado o jogo Second Life, desenvolvido com o propósito de criar uma realidade paralela em que usuários poderiam jogar, socializar, trabalhar e até comprar e vender propriedades etc. 

Em 2006, na mesma linha do Second Life, o Roblox disponibilizou uma multiplataforma de simulação que permite que os jogadores criem seus próprios mundos ou experiências virtuais e interajam com os mundos de outros jogadores. 

Mais recentemente, o Fortnite desenvolvido pela Epic Games ganhou enorme popularidade e é hoje um dos motores gráficos de jogo mais utilizados no mundo. Com cerca de 350 milhões de usuários, mais pessoas jogam Fortnite do que futebol ou basquete. 

Mas o que é metaverso?

De forma simplificada, metaverso é um universo virtual que conecta o mundo digital com o real, oferecendo experiências imersivas, coletivas e hiper-realistas, seja em realidade virtual (simula o mundo real e permite a total interação dos participantes), seja em realidade aumentada (combina aspectos dos mundos virtual e físico, como é o caso do Pokemon Go). 

Pode-se falar, também, em espaço virtual compartilhado, acessível por meio de óculos especiais de realidade virtual, por exemplo, no qual as pessoas poderão conviver a partir de avatares personalizados e tridimensionais. 

O metaverso, então, não é uma nova tecnologia, mas uma forma diferente de interagir no meio digital. Ao invés de acessar o site de uma loja por meio de uma tela de computador, o usuário entra virtualmente na loja com seu avatar, através de uma experiência realmente tridimensional e sensitiva. Mais do que um espaço ou um lugar, o metaverso reflete e se caracteriza pela hipervalorização gradual da sociedade à vida digital, em detrimento da vida física.

Metaverso x prática jurídica

Para a prática jurídica, a disseminação do metaverso reflete novas formas de desempenhar atividades corriqueiras, englobando desde a abertura de escritórios de advocacia até a realização de reuniões virtuais, audiências e eventos, assessoria em transações financeiras, compra e venda de arte etc. 

Naturalmente, à medida que as empresas passam a encontrar seu potencial no metaverso, expandindo as fronteiras tradicionais dos seus negócios– a Nike criou a Nikeland e a Nvidia criou a Nvidia Universe, por exemplo -, os escritórios de advocacia, que estão atentos a este movimento de hipervalorização da vida digital, passaram a atuar nesse meio, assessorando os empreendedores a atingirem seus novos propósitos corporativos, a depender das regras de cada país. Já há, inclusive, um escritório nos Estados Unidos que abriu uma sede no metaverso. 

Além disso, o metaverso traz alternativas para o funcionamento do próprio exercício da advocacia, por exemplo, ao viabilizar a realização de reuniões em um ambiente virtual e tridimensional acessado por meio de fones de ouvido, óculos de realidade virtual ou mesmo relógios conectados. 

A ideia é a de que as reuniões sejam mais realistas do que as reuniões em meios digitais já realizadas atualmente (por exemplo, via Zoom ou Teams), nas quais as pessoas utilizarão avatares que poderão copiar suas expressões faciais e proporcionar uma experiência mais personalizada e sensorial, como se fosse um “espelho” da vida real. A Microsoft apresentou, recentemente, o Mesh, recurso que permitirá a realização de reuniões virtuais no Teams com o uso de avatares tridimensionais. 

Pode ter escritório de advocacia no metaverso?

Neste contexto de exercício da advocacia no metaverso, e especificamente sobre a possibilidade de abrir escritórios no metaverso, o entendimento atual é vinculado à decisão do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB de São Paulo (OAB/SP) de 2007, envolvendo a publicidade por meio da prestação de serviços advocatícios no Second Life, um dos primeiros metaversos de videogame. 

Naquele caso, a OAB/SP entendeu que, se o advogado utiliza o referido ambiente virtual para obter clientes, com ou sem remuneração, a quem serão prestados, no ambiente eletrônico ou fora dele, serviços advocatícios efetivos, as regras legais e éticas aplicáveis aos advogados se aplicam. Isso porque, em razão da rastreabilidade, que é característica desse tipo de ambiente, não há como garantir o sigilo profissional do advogado, nem a pessoalidade que pauta a relação cliente-advogado, o que inviabilizou a abertura e manutenção de um escritório virtual no Second Life. 

Há argumentos no sentido de que a decisão de 2007 está ultrapassada, e que escritórios poderiam ter uma “sede institucional” no novo ambiente, que não preste diretamente serviços de advogado, mas que representem apenas uma presença nesse novo ambiente virtual. 

De toda forma, a presença do advogado no metaverso, por si só, não é vedada – o que se proíbe, de fato, é a abertura e manutenção de um escritório de advocacia. Nesta linha, a atuação do advogado no metaverso deve se dar de forma moderada e técnica, dentro dos limites do Provimento 205/2021 da OAB, que dispõe sobre publicidade e informação da advocacia e é a regra que temos para direcionar o tema. 

Regras, lacunas e jurisdição no metaverso

Além dos aspectos relacionados ao exercício da advocacia em si, como toda tecnologia nova, há riscos e lacunas jurídicas a serem preenchidas, que vão desde a ausência de regras uniformes aplicáveis ao metaverso, o que evidencia um problema essencialmente regulatório, e não novo, relacionado à forma com a qual serão tuteladas situações em um universo que não conhece fronteiras, nem jurisdição; a indefinição sobre a existência de direitos da personalidade que se reflete em problemas de usurpação de identidade – por exemplo por meio de catfishing -, de proteção à privacidade e aos dados pessoais coletados por dispositivos de realidade virtual; até a responsabilidade civil e criminal por infrações cometidas no metaverso – como por exemplo a infração a direitos de propriedade intelectual.

Somando-se aos riscos indicados, a jurisprudência sobre o assunto ainda é escassa, especialmente no Brasil. Caberá ao Legislativo e, eventualmente à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), acompanhar o desenvolvimento da tecnologia e regulamentá-la, garantindo conformidade e segurança jurídica nesta nova realidade.

Espera-se que, à medida que a utilização do metaverso aumente, crescerá também a relevância do blockchain e dos NFTs (“non-fungible tokens”) como mecanismos para viabilizar investimentos no metaverso e a necessidade de respostas regulatórias. Isso porque o uso do NFT garante a unicidade e originalidade do bem transacionado, podendo ser utilizado como mecanismo para viabilizar a autenticação das transações de quaisquer itens no metaverso – por exemplo, compra de terrenos virtuais, ou titularidade de propriedades intelectuais. 

Além disso, já existem criptomoedas associadas ao metaverso, como é o caso da Decentreland (MANA), a Sandbox (SAND) e a Enjin Coin (ENJ), que representam valores expressivos e despertam, por exemplo, o desejo de governos e autoridades pela tributação. 

Leia também: Ano de vigência da LGPD: o que esperar para 2022?


*Isabel Hering é associada Sênior da área de Propriedade Intelectual e Tecnologia da Informação do Veirano Advogados, com especialização em Direito Internacional e Europeu pela Universidade Paris-Descartes (PARIS V), pós-graduação em Propriedade Intelectual e Novos Negócios pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e formação em Propriedade Intelectual pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) em parceria com a Universidade de Genebra (UNIGE) e pelo Instituto Japonês de Propriedade Industrial (JPO) JIPII e HIDA.

*Cecília Alberton Coutinho Silva é advogada da área de Propriedade Intelectual e Tecnologia da Informação do Veirano Advogados, mestranda em Direito na linha de pesquisa de “Direito, Ciência, Tecnologia & Inovação” na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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