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Os Criptoativos e o Mercado de Valores Mobiliários: O Parecer nº 40 da CVM

criptoativos

Paulo Salvador Ribeiro Perrotti*

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou em 11.10.2022 o Parecer de Orientação nº 40, que trata sobre criptoativos e o mercado de valores mobiliários.

Preliminarmente, a CVM conceitua o que são criptoativos, qualificando-os como ativos representados digitalmente, protegidos por criptografia, que podem ser objeto de transações executadas e armazenadas por meio de tecnologias de sistemas de registro em cadeias de blocos distribuídos (distributed ledger technology – DLTs ou “blockchains”). Usualmente, os criptoativos (ou a sua propriedade) são representados por tokens, que são títulos digitais intangíveis.

O Parecer nº 40 tem o objetivo de esclarecer os limites de atuação da Autarquia e a forma como a CVM pode e deve exercer seus poderes para normatizar, fiscalizar e disciplinar a atuação dos integrantes do mercado de capitais, visando garantir maior previsibilidade e segurança, bem como fomentar um ambiente favorável ao desenvolvimento dos criptoativos, com integridade e aderência aos princípios constitucionais e legais relevantes. 

Compromissos da CVM 

Desta forma, a CVM estabelece o compromisso de contribuir para (i) a proteção do investidor e da poupança popular; (ii) a prevenção e o combate à lavagem de dinheiro, (iii) prevenção e combate à corrupção; (iv) controle à evasão fiscal; e (v) prevenção e combate ao financiamento do terrorismo e/ou proliferação de armas de destruição em massa.

Embora a tokenização (processo de representar digitalmente um ativo ou propriedade de um ativo de forma criptografada) não esteja sujeita, em um primeiro momento, à prévia aprovação ou registro na CVM, caso venham a ser emitidos valores mobiliários com fins de distribuição pública, tanto os emissores quanto a oferta pública de tais tokens estarão sujeitos à regulamentação aplicável. 

Classificação de criptoativos

Os criptoativos, que costumam ser designados como tokens e podem desempenhar diversas funções, podem ser classificados de acordo com as seguintes categorias:

  1. Token de Pagamento (cryptocurrency ou payment token): busca replicar as funções de moeda, notadamente de unidade de conta, meio de troca e reserva de valor;
  1. Token de Utilidade (utility token): utilizado para adquirir ou acessar determinados produtos ou serviços; e
  1. Token referenciado a Ativo (asset-backed token): representa um ou mais ativos, tangíveis ou intangíveis. São exemplos os “security tokens”, as stablecoins, os non-fungible tokens (NFTs) e os demais ativos objeto de operações de “tokenização”. 

As categorias citadas acima não são exclusivas, de modo que um único criptoativo pode se enquadrar em uma ou mais categorias, a depender das funções que desempenha e dos direitos a ele associados.

Tokens e valores mobiliários

A CVM entende que o token referenciado a ativo (asset-backed token) pode ou não ser um valor mobiliário e que sua caracterização como tal dependerá da essência econômica dos direitos conferidos a seus titulares, bem como poderá depender da função que assuma ao longo do desempenho do projeto a ele relacionado.

Nesse sentido, vale mencionar que a prática de mercado vem demonstrando que um token pode representar não só ativos, como também direitos de remuneração por empreendimento, direito a receber relacionado a estruturas assemelhadas às de securitização, ou, ainda, direito de voto. A esse respeito, a CVM declara  que alguns desses modelos aproximam os tokens emitidos do conceito de valor mobiliário e, tendo isso em vista, a atuação da Autarquia dependerá da análise dos casos em concreto.

Ato sequente, o Parecer de Orientação nº 40 determina que o conceito de valor mobiliário tem natureza instrumental e objetiva delimitar o regime mobiliário e, consequentemente, a competência da CVM. Dessa forma, nas hipóteses em que determinado criptoativo for valor mobiliário, os emissores e demais agentes envolvidos estarão obrigados a cumprir as regras estabelecidas para o mercado de valores mobiliários e poderão estar sujeitos à regulação da CVM.

Características para criptoativos serem valores mobiliários

Ainda que os criptoativos não estejam expressamente incluídos entre os valores mobiliários citados nos incisos do art. 2º da Lei nº 6.385/76, os agentes de mercado devem analisar as características de cada criptoativo, com o objetivo de determinar se é valor mobiliário, o que ocorre quando:

  1. é a representação digital de algum dos valores mobiliários previstos taxativamente nos incisos I a VIII do art. 2º da Lei nº 6.385/76 e/ou previstos na Lei nº 14.430/2022 (i.e., certificados de recebíveis em geral); ou
  1. enquadra-se no conceito aberto de valor mobiliário do inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76, na medida em que seja contrato de investimento coletivo.

No que diz respeito aos criptoativos que se enquadram nos requisitos previstos no inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76, a Autarquia já se manifestou em determinadas ocasiões para esclarecer que a caracterização de determinado ativo como um contrato de investimento coletivo não dependeria de manifestação prévia da CVM. 

Uma boa forma de identificar se um criptoativo é um valor mobiliário ou não é o famoso Teste de Howey, utilizado pela Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC), que considera serem valores mobiliários aquelas criptomoedas que se adequam ao teste em questão e, consequentemente, estariam sujeitas à regulamentação de valores mobiliários.

Afinal, o que é o Teste de Howey?

O Teste de Howey foi um caso de 1946 na Suprema Corte Norte Americana. No caso, o titular W.J. Howey Company vendeu lotes de pomares de cítricos para investidores externos. Howey e os investidores chegaram a um acordo pelo qual os compradores imediatamente arrendariam os pomares de volta para Howey, que colheria e venderia os produtos cítricos resultantes.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que os pomares de cítricos, no caso, constituíam um contrato de investimento e, portanto, um título. Ele aplicou quatro critérios principais para tomar essa decisão, que posteriormente ficou conhecido como Teste de Howey.

Para que um instrumento financeiro seja apelidado de título e caia sob a alçada da SEC, o instrumento deve atender a estes quatro critérios:

  1. Deve ser um investimento de dinheiro
  2. Com expectativa de lucro
  3. Em uma empresa comum
  4. Com o lucro a ser gerado por um terceiro.

Parecer de Orientação nº 40

Cumpre esclarecer que Parecer de Orientação nº 40 referencia, mesmo que indiretamente, o Teste de Howey, no sentido em que o colegiado da CVM tem reiteradamente considerado as seguintes características de um contrato de investimento coletivo para decidir se determinado título é ou não é valor mobiliário: 

  1. Investimento: aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica; 
  2. Formalização: título ou contrato que resulta da relação entre investidor e ofertante, independentemente de sua natureza jurídica ou forma específica; 
  3. Caráter coletivo do investimento; 
  4. Expectativa de benefício econômico: seja por direito a alguma forma de participação, parceria ou remuneração, decorrente do sucesso da atividade referida no item (v) a seguir; 
  5. Esforço de empreendedor ou de terceiro: benefício econômico resulta da atuação preponderante de terceiro que não o investidor. Esse requisito estará preenchido, por exemplo, nas situações em que a criação, aprimoramento, operação ou promoção do empreendimento dependam da atuação do promotor ou de terceiros; e 
  6. Oferta pública: esforço de captação de recursos junto à poupança popular.

Neste sentido, o Parecer de Orientação nº 40 ainda estabelece que o benefício econômico esperado resulta diretamente do resultado do empreendimento (e.g., participação nos resultados do empreendimento), sendo certo que o resultado advém em última análise dos esforços do empreendedor ou de terceiros, e não de fatores externos, que fogem ao domínio do empreendedor. 

Sendo assim, os criptoativos que estabeleçam o direito de seus titulares participarem nos resultados do empreendimento, inclusive por meio de participação ou resgate do capital, acordos de remuneração e recebimento de dividendos, terão, em princípio, preenchido esse requisito.

Valores mobiliários emitidos no exterior

Nota-se que a oferta de valores mobiliários emitidos no exterior pode ser considerada irregular se não tiver registro na CVM. De acordo com o Parecer de Orientação CVM nº 33/05, a utilização de meios de comunicação “destinados a atingir o público em geral residente no Brasil” é um critério relevante para verificação de oferta pública irregular. Além disso, também é relevante a existência de texto para atrair investidores residentes no Brasil, ainda que em idioma estrangeiro. Por fim, deve-se avaliar se há emprego de medidas efetivas com o intuito de impedir que investidores residentes no Brasil tenham acesso ao conteúdo da página.

Por fim, de forma resumida, o Parecer de Orientação nº 40 reforça o fato que não cabe à CVM interferir no exame de mérito das oportunidades de investimento oferecidas ao público em geral, por exemplo, mediante a seleção prévia daquelas julgadas mais promissoras, seguras ou merecedoras de outros atributos elogiosos. Em vez disso, compete à CVM proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores do mercado, bem como assegurar o acesso do público a informações corretas, claras e completas sobre os valores mobiliários negociados, disponíveis a todos igualmente.

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Paulo Salvador Ribeiro Perrotti: CEO da LGPDSolution, Professor de Cyber Security na Pós Graduação da Faculdade de Engenharia de Sorocaba (FACENS), Professor de Cibersegurança Ofensiva com Certificação (CEH) pela ACADI-TI, Presidente da Câmara de Comércio Brasil-Canadá de 2017 a 2021, Auditor Líder Certificado ISO 27001 (segurança da informação), com especialização em Direito Canadense e de Québec pela Université de Québec à Montreal – UQÀM, possuindo Pós Graduação em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, especialização em Direito de Informática (LLM) pelo IBMEC/SP, Mercado Financeiro pelo Instituto Finance e Responsabilidade Social pela ESPM/SP, Certified Secure Computer User (CSCU) pela EC-Council e membro da Comissão Especial de Relações Internacionais da OAB/SP.

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