Helena Vasconcellos*
Victória Hellen Oliveira**
Introdução
No mês das mulheres, se faz necessário reconhecer alguns marcos legislativos importantes e também significativos avanços tecnológicos capazes de evitar e, se não for possível, punir condutas que firam a sua dignidade, bem-estar, dentre tantos outros bens jurídicos protegidos quando o assunto é a integridade física e psicológica da mulher.
A cada dia surgem novas tecnologias capazes de suprir demandas da humanidade e estabelecer as novas tendências. Em tempos de revolução tecnológica, é necessário que as lutas sociais acompanhem essa evolução e, por esse motivo, torna-se importante a existência de formas inovadoras que defendam a igualdade de gênero.
Afinal, se inovações como Internet das Coisas (IoT), Inteligência Artificial (IA) e Big Data são capazes de auxiliar em problemas relacionados à segurança de empresas e cidades, elas também podem ser aliadas na proteção da mulher. Entretanto, de forma tímida tais soluções já existem, seja na esfera pública ou privada.
A questão de que se trata o referido artigo é de fato mostrar que tais iniciativas são armas importantes para a luta contra a opressão de gênero, mas podem sempre ser aprimoradas e ganhar mais enfoque na sociedade.
Lei Carolina Dieckmann
O fato que motivou a Lei Carolina Dieckmann aconteceu em 2011. A atriz teve sua intimidade violada após ter o seu celular hackeado e ter recebido ameaças e tentativas de extorsão para que 36 imagens íntimas suas não fossem publicadas nas redes sociais. Como a atriz não cedeu às ameaças, teve suas imagens expostas ao público.
Menos de um ano após os fatos, no dia 30 de novembro de 2012, foi sancionada a Lei nº 12.737/2012, apelidada de Lei Carolina Dieckmann. A criação da lei se deu em virtude do caso da atriz que, na época do crime, não recebeu o devido amparo de nenhuma legislação específica para a penalização dos criminosos.
O novo texto prevê a alteração nos artigos 154-A e 154-B do Código Penal, incluindo, pela primeira vez, a tipificação de crimes virtuais e delitos informáticos, como a invasão de dispositivos informáticos com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do proprietário.
O texto do artigo 154-A considera crime invadir dispositivo informático de uso alheio, conectado ou não à rede de computadores, com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do usuário do dispositivo ou de instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. A pena base é de 1 a 4 anos de reclusão e multa.
Segundo o parágrafo 1o, quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput incorre na mesma pena. Existem hipóteses de aumento de pena, mas a mais importante está no parágrafo 4o, que estabelece que aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos, exatamente o que aconteceu no caso da atriz Carolina Dieckmann.
Claro que o avanço da tecnologia e a própria deep web por vezes dificultam a identificação dos autores dos crimes mas, uma vez identificada, a pena é alta, podendo chegar a 8 anos de reclusão. O caso Carolina Dieckmann foi um grande marco nos crimes cibernéticos do Brasil, pois trouxe accountability para atos que antes não tinham punição específica na legislação.
Pornografia de Vingança: Você já ouviu a frase “manda nudes”?
A pornografia de vingança ocorre quando com o término do relacionamento um dos envolvidos divulga imagens íntimas do outro, sem o consentimento da vítima. Antes de ser tipificado, o crime já ocorria com exposições indesejadas antes dos anos 2000, quando ainda não existiam tantos avanços tecnológicos como nos dias atuais.
A história mais antiga trata de uma revista masculina denominada “Hustler”, fundada pelo editor Larry Flynt e em circulação até os dias atuais, em uma ação que pedia aos leitores que enviassem fotos íntimas de suas parceiras para serem publicadas. Tendo começado no papel, a campanha revelava, além de imagens pessoais, algumas informações sobre as vítimas e o seu comportamento sexual.
A “campanha”, denominada de “Beaver Hunt”, gerou diversas consequências processuais para a revista, pelo motivo das “protagonistas” terem sido expostas sem o seu conhecimento ou até consentimento.
O crescimento desse tipo de pornografia é uma das raízes do revenge porn. Como vemos, prazer em exibir ou observar o corpo sempre existiu, a mudança surgiu com a facilidade que o surgimento da internet e dos smartphones com câmeras cada vez melhores trouxeram às pessoas, tornando-se mais fácil a proliferação de imagens íntimas, e de uma rede mais democrática.
Portanto, agora o volume desse tipo de conteúdo tornou-se mais denso e fácil de ser consumido, não importa o local, tendo em vista que o celular é a principal forma de comunicação em todos os lugares. Se alguns anos atrás era preciso revelar ou escanear as imagens para compartilhá-las, atualmente tornou-se cada vez mais fácil.
O fato se tornou tão comum na sociedade que até nome existe para esse tipo de fotos, que são denominadas de “nudes” e são tratadas como brincadeiras ou memes de internet, motivo de muita polêmica na mídia. A prática, antes denominada “sexting”, ganhou um novo apelido em 2015.
Não há registros oficiais sobre quando iniciou a pornografia de vingança no Brasil, mas um dos casos mais emblemáticos no país foi o da jornalista Rose Leonel, em 2005. A mesma ainda tem traumas mesmo após anos de sua exposição e luta para que a pena contra seu agressor seja justa. Segundo dados da Safernet, que presta auxílio on-line a vítimas, as notificações de revenge porn só aumentam. Foram 101 pedidos de ajuda à ONG em 2013, e 224 no ano seguinte, um crescimento de 120%.
Ocorrem, em alguns casos, de o evento ser tão traumático ao ponto de fazer as vítimas cometerem suicídios, o que fez com que a questão se tornasse mais discutida. Em 2013, duas adolescentes, em um intervalo de quatro dias após terem imagens íntimas divulgadas, atentaram contra sua própria vida.
Além dos casos que repercutiram nacionalmente e os números registrados, ainda não é um retrato fiel do problema no Brasil. Provavelmente o número é ainda maior de pessoas que não pedem auxílio, por medo ou até vergonha da repressão pessoal.
Entretanto, com o advento da Lei n° 13.718, que entrou em vigor somente em 24 de setembro de 2018, foram inseridos novos crimes no texto do Código Penal. O artigo 218-C prevê como condutas criminosas oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.
A pena para esse tipo de crime é de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. E pode ser aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.
O fato é que a motivação para tais imagens compartilhadas, com intenção de causar danos e ferir a honra da vítima, mostram como alvo, em sua maioria, as mulheres. É certo que a liberdade sexual configura-se como direito humano, mas é importante expressá-la de forma consciente online.
A ideia é se proteger dentro e fora das redes, o que constitui uma necessidade de estar atento à sua própria segurança.
Stalking
A lei que tipifica o crime de perseguição, prática também conhecida como stalking, aumentou a proteção de vítimas de situações como comportamentos insistentes após fim de relacionamentos, de obsessão ou perturbação frequente pela internet.
O crime de stalking se configura a partir de atitudes recorrentes do perseguidor no cerceamento da liberdade e privacidade da vítima, como frequentar locais nos mesmos horários, impor sua presença, rondar a casa, etc.
E o crime não é só com a perseguição física. Também há o cyberstalking, categoria criminal que estende essa perseguição reiterada na internet. Este cerceamento não está relacionado com a presença física do agressor, e sim com o envio excessivo de mensagens, ligações e por aí vai.
O crime de perseguição é dividido em três categorias. Há o stalking de idolatria, no qual o agressor persegue reiteradamente alguma celebridade, jogador de futebol, autoridade política ou alguma figura pública; o stalking funcional, quando a perseguição é feita contra algum colega de trabalho; e o stalking afetivo, em muitos casos atrelados à violência doméstica, que é quando o perseguidor possui alguma relação afetiva ou familiar com a vítima.
A Lei nº 14.132/2021 descreve o crime de perseguição e acrescenta o Art. 147-A ao Código Penal Brasileiro.
A pena prevista para quem comete este crime é de seis meses a dois anos de prisão e multa, penalidades que aumentam se a perseguição for cometida contra criança, adolescente, idoso, mulher, ou nos casos em que o crime é cometido com o emprego de arma ou por duas ou mais pessoas contra a mesma vítima. Nestas situações, a pena pode chegar a três anos de prisão.
Crimes contra a Mulher e Revitimização
O ICO britânico publicou um estudo no ano passado falando sobre a revitimização de vítimas de violência contra a mulher. A verdade é que, segundo o estudo, o excesso de informações solicitadas da vítima podem levar a uma revitimização, seja por obrigá-la a reviver o ocorrido, seja por tornarem esses dados públicos a terceiros que podem cometer novos crimes com eles em mãos.
Basicamente, as vítimas são obrigadas a abrir mão dos seus direitos de privacidade ao autorizar o acesso a documentos extremamente sigilosos, como um laudo de ocorrência do crime de estupro, por exemplo.
É esse excesso de coleta de informações que leva muitas vítimas, no Reino Unido, a desistir dos processos (que incluem a solicitação de informações sensíveis). Para as vítimas, vulneráveis que estão, a informação que estão recebendo é a de que para que o caso delas progrida elas basicamente precisam abrir mão do direito à sua privacidade.
O estudo observa que as baixas taxas de processo nos casos de violência sexual são um sinal de que o sistema de justiça criminal está falhando em fomentar a confiança necessária das vítimas para sustentar seu envolvimento no processo.
Em uma pesquisa, identificou-se que a cada 5 vítimas, 1 abriu mão do seu caso por problemas de privacidade. Em 21% dos casos, as vítimas tinham medo que seu material digital fosse baixado e informações como hospital, escola e registros de emprego, por exemplo, seriam vazadas. Contribuiu para essa impressão casos em que houve uma cobertura ruim por parte da imprensa e a experiência negativa de outras vítimas.
Tanto é assim que na Paraíba agora é lei: os dados das mulheres vítimas de violência são sigilosos nas repartições públicas (Lei 11.791/2020). O objetivo primordial da lei é evitar que o agressor tenha acesso à vítima com base em suas informações públicas.
Formas de se Proteger Digitalmente e Tecnologia a Favor da Proteção da Mulher
Tendo em vista o cenário em que as mulheres são vítimas de violência de gênero cotidianamente, já existem soluções tecnológicas aplicadas na esfera pública e privada que contribuem para o enfrentamento de casos em que a mulher se torna a vítima. Esse artigo trouxe três exemplos de dispositivos de proteção da mulher:
Botão do pânico
O nome é pouco sugestivo, mas serve como um aliado a vítimas de violência contra a mulher. Como política pública, diversos estados brasileiros oferecem o dispositivo que, quando acionado, envia um sinal para que as forças de segurança possam ser acionadas de maneira ágil, 24 horas por dia, considerando os momentos em que existam situações de risco. Além de não emitir nenhum tipo de som, é equipado com GPS e com capacidade de gravar áudios, o que auxilia na preservação da integridade da mulher.
Atualmente, esse botão está disponível em São Paulo, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, entre outros estados e desde a sua criação, o dispositivo evoluiu ao passar dos anos. No Paraná, existe desde 2021 o “Botão do Pânico Virtual”, integrado ao app 190, da PM Estadual. Não há necessidade da mulher ligar para a força de segurança, pois quando acionado, uma viatura se desloca ao local de maneira prioritária.
App Todos por uma
O aplicativo nasceu para a proteção às mulheres em momentos de perigo, e funciona de maneira gratuita. Salvar mulheres da violência doméstica é o objetivo principal da tecnologia, que possibilita que mulheres consigam cadastrar números de pessoas de confiança, denominadas de “anjo” e que recebem notificações em casos de risco.
Além de oferecer uma interface segura, que simula um app de compras para não despertar a desconfiança do agressor, quando o aplicativo é acionado, a localização da usuária é atualizada a cada 30 segundos, fazendo com que o anjo consiga ter precisão ao ir no local ou chamar as autoridades responsáveis para socorrer a vítima.
Outro fato importante é que o criador do app criou o aplicativo por conta da sua própria realidade. Mateus cresceu vendo o pai agredir a mãe, que conseguiu romper com o ciclo de agressões. Outra funcionalidade é o mapeamento de locais de risco, indicado pelas próprias mulheres, o que auxilia as demais a identificar e evitar as áreas mapeadas. Além do Brasil, ele também atende usuárias dos Estados Unidos, Canadá, Portugal, Colômbia, Grécia, entre outros países.
Projeto Glória
A Glória é uma inteligência artificial, que visa coletar dados e analisá-los a partir da interação com as mulheres e tem como objetivo funcionar de forma online e offline, em tokens instalados em festas, feiras e eventos. Essa ferramenta de machine learning surgiu como uma iniciativa de combate à violência de gênero e empoderamento da mulher, e tem a missão de evitar e dar suporte para que a violência não chegue a se consumar, tendo em vista que a proposta da robô é também fornecer esclarecimento a mulheres que ainda não conseguem discernir o que é agressão.
Uma das ações idealizadas por esse projeto em 2022 foi o ebook denominado: “Basta! O grito glorioso”, que traz conteúdo educativo sobre a violência de gênero, autocuidado e dicas para ajudar mulheres que vivem nessa situação e não conseguem se identificar assim, para que possam denunciar agressões e acabar com um ciclo tão doloroso.
Conclusão
Embora estes crimes não sejam praticados exclusivamente contra mulheres, é sabido que elas ainda são o grande alvo. E percebe-se que as plataformas apresentadas podem ser consideradas como um avanço, além de um reconhecimento de que as tecnologias digitais são aliadas no combate à opressão de gênero. A tecnologia evolui diariamente, e as inovações se desdobram em questões sociais importantes, entre elas o potencial enfrentamento no auxílio da violência contra a mulher.
Entretanto, muito ainda deve ser feito, tendo em vista, por exemplo, a ascensão do metaverso, que cria um ambiente próximo a realidade, mas de maneira totalmente virtual. Tanto que existe uma iniciativa denominada #MyNameMyGame, para mulheres que sofrem assédio em plataformas online e de games, pois mais da metade dos gamers são mulheres, entretanto se escondem em nicks masculinos para evitar o assédio online.
É preciso reconhecer que já avançamos muito, seja em termos de legislação ou de tecnologia, mas que ainda há muito a fazer se queremos um ambiente online seguro para as mulheres ao redor do mundo.
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Helena Vasconcellos: Fundadora da LGPDTalks®. Privacy Enthusiast. Advogada e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Privacidade e Proteção de Dados desde 2003. Data Protection Officer (DPO) certificada pela EXIN, e em processo de certificação pelo IAPP. Colunista, Professora, Palestrante, Consultora e Voluntária em assuntos relacionados à privacidade e à proteção de dados.
Victória Hellen Oliveira: Data Privacy Specialist na LGPDTalks®, Privacy Enthusiast e advogada. Especialista em Privacidade e Proteção de Dados. Colunista, Professora, Palestrante, Consultora e Voluntária em assuntos relacionados à privacidade e à proteção de dados.