Amanda Bruneli*
Nos últimos dias, o feed do Instagram tem sido perpetrado por uma série de avatares editados e formuladas a partir de um aplicativo chamado Lensa. Criado em 2018 pela Prisma Labs, o aplicativo viralizou recentemente e tem trazido muitas discussões acerca dos aspectos inerentes à propriedade intelectual e o uso da inteligência artificial na captura e armazenamento de dados.
O app que usa Inteligência Artificial (IA) para criar avatares artísticos através das fotos dos usuários já foi responsável por mais de 400 mil postagens com as imagens com a hashtag no Instagram.
De imediato, não parece haver muito com o que se preocupar em relação ao Lensa, ao contrário de outros aplicativos de edição facial que surgiram nos últimos anos. Além do fato de que o app indica menos rastreamento e obtenção de informações que outras soluções bastante usadas, como redes sociais e outros apps de edição, sendo que os termos de uso são de fácil entendimento, até mesmo para um leigo, já que utiliza termos claros no que toca o uso e armazenamento das imagens dos usuários, mesmo que disponível apenas em inglês.
Informações pessoais coletadas e armazenadas no app
Porém, é necessário lembrar que quase todas as informações pessoais do usuário são enviadas para os servidores da empresa. Ou seja, dados do cadastro inicial, histórico de navegação e atividade online e rastreamento comportamental em sites de terceiros, além da coleta e-mail, ID do dispositivo, data e hora de autorização de uso do Lensa e dados da Play Store ou App Store.
Ainda que a Prisma deixa claro que estas informações são usadas com o velho intuito de melhorar o uso do Lensa, fornecendo uma experiência personalizada para cada usuário, questões de segurança da informação e privacidade e proteção de dados podem ser deixadas em segundo plano, já que muitos usuários têm se esquecido que, para criar as edições, o app precisa processar a aparência de seus usuários e coletar muitos de seus dados.
Devemos esclarecer que o uso de fotos dos usuários para treinar a inteligência artificial é algo que tende a ganhar cada vez mais espaço na era digital, e que isso por si só não é uma atividade de risco. O problema surge na cultura de privacidade e proteção de dados que a empresa utiliza – como vemos na política de privacidade de um aplicativo, se ela é realmente transparente em como utiliza e armazena os dados dos usuários, além do dever de assegurar aos mesmos uma exclusão de seu banco de dados, por exemplo, como boa prática.
Cadastro do Lensa nas lojas oficiais
É válido lembrar que o app não exige cadastro para ser usado, e que o pagamento pelas edições é processado através do Google e da Apple. No sistema iOS, a autorização requerida é pelo rastreamento em outros apps; já no Android, as solicitações se limitam ao uso da câmera e acesso ao armazenamento de fotos e mídia. Porém, ressalta-se que, através dessa coleta automática, o Lensa obtém detalhes sobre o celular usado, como marca, modelo e informações de hardware, assim como IP da conexão e cookies.
Não se pode afirmar com certeza por qual motivo o aplicativo faz isso, mas conforme o que se tem visto de apps que tem a mesma postura, é de um possível compartilhamento de dados de uso e rastreamento dos usuários com parceiros ligados à publicidade ou utilização para emitir avisos aos usuários, assim como para executar tarefas de suporte, atualização ou monitoramento e correção de bugs – o que é muito comum.
Até aí tudo bem, porque se tratam de elementos comuns em boa parte dos softwares utilizados nos sistemas operacionais Android e iOS, e ainda, a Lensa deixa claro através dos seus termos todas as possibilidades em relação ao uso de informações dos usuários. Além disso, a empresa responsável pelo app esclarece que só vai processar os dados necessários para suas finalidades, sendo que o consentimento do usuário será solicitado em caso de mudanças nos artigos ou necessidade de coleta adicional.
Consentimento e propriedade intelectual no Lensa
Porém, o primeiro ponto a ser observado é que, do ponto de vista jurídico, a empresa administradora dos aplicativos obtém, através do consentimento, uma grande quantidade de base dados dos usuários, que, ao concordarem com os termos de uso e realizarem o cadastro no aplicativo, estarão cedendo seus dados pessoais e informações do cartão de crédito ou bancário, além das fotos que enviou para a criação dos avatares.
O segundo e mais importante ponto que merece um olhar muito atento está em um termo específico da política que consta no aplicativo, relacionado à propriedade intelectual das criações feitas pelo Lensa. Ainda que alguns termos da política de privacidade garantam que os usuários podem usar, editar, compartilhar ou fazer qualquer tipo de uso das imagens ali editadas, em contrapartida transferem à Prisma Labs o direito de criar obras derivativas a partir do resultado das edições, sem a necessidade de pedir autorização ou realizar pagamentos.
Sobre esse ponto, os termos de uso dizem que “você nos concede uma licença perpétua, revogável, não exclusiva, isenta de royalties, mundial, totalmente paga, transferível, sublicenciável para usar, reproduzir, modificar, adaptar, traduzir, criar trabalhos derivados e transferir seu Conteúdo de Usuário, sem qualquer compensação adicional para você.” (traduzido do inglês para o português).
Permissão do usuário x licença de uso do material
Esses termos são amplos até demais, e fica claro que foram elaborados de uma forma bem sutil para “parecer” que há ressalvas que preservam a vontade do usuário, mas, na verdade, o que se tem é a permissão do usuário, entregando seus dados pessoais para que a Prisma use isso de forma ampla, sem direito a receber nada em troca, sendo que essa utilização pode ser feita a nível mundial e, inclusive, com o direito de ceder tais dados a terceiros que nada tem a ver a relação.
Em termos práticos e bem exemplificativos, a empresa pode realizar uma campanha de marketing, quando bem entender, usando imagens criadas pelos usuários do Lensa, por exemplo, ou utilizar as edições feitas nas fotos em campanhas pagas ou novos projetos. Além disso, os usuários ainda têm a responsabilidade pelo conteúdo que é anexado no app, e precisam ser os detentores dos direitos de uso das imagens originais, sem que a Prisma Labs tenha qualquer jurisdição sobre o material criado.
Por isso, é necessário esclarecer que, a partir do momento em que o usuário se cadastra ele está concedendo uma licença irrevogável, irretratável, perpétua, global, livre de qualquer remuneração para que a Prisma possa explorar, da forma como quiser, o conteúdo desse usuário, independentemente de incluir o nome, imagem ou personalidade, suficiente para indicar a identidade do indivíduo. Sendo assim, novamente, do ponto de vista jurídico, a pessoa que usa o aplicativo não está comprando um serviço, ela está doando a propriedade intelectual atrelada a sua imagem – que é considerado um dado pessoal – para uma empresa monetizar esse dado sem qualquer compensação ou satisfação a esse usuário.
Monetização de dados
Essa monetização estuda o padrão de consumo dos usuários e passa a oferecê-los produtos, através de anúncios da empresa e de terceiros. A discussão sobre esse aspecto está principalmente ligada à questão do uso da Inteligência Artificial nesses casos.
Alguns especialistas têm defendido que o titular dos dados deve ficar mais atento ainda para o fato de que, doando essa propriedade intelectual, estará ajudando a empresa a evoluir exponencialmente o aprendizado da Inteligência Artificial empregada naquele modelo de negócio – e isso ocorre porque, quanto mais dados o aplicativo absorve, mais preciso (exato) ele fica ao gerar as imagens. Ou seja, o risco estaria no uso de softwares ligados à inteligência artificial – as fotos seriam supostamente usadas para treinamento das IAs para outros fins.
Por outro lado, existem especialistas que defendem que isso não faria o menor sentido, já que fazer uma empresa desse porte, depender do upload de imagens de usuários em uma solução paga, quando existem fotos de rostos gratuitos, ou mesmo pagos, plenamente disponíveis na internet, é ineficaz em se tratando de estratégia e gestão financeira.
Portanto, não devemos descartar que há um risco relacionado a essa operação e essa política de termos de uso do app, já que a questão da doação de propriedade intelectual é perigosa para o usuário, mesmo que ele não reconheça isso de imediato. Porém, é válido lembrar que, para aqueles que já tiverem feito seus avatares através do aplicativo, mas porventura, não concordem com a cessão dos direitos deles para a companhia, pode fazer contato com o app, pelo e-mail [email protected], e solicitar a exclusão de tudo que foi feito, tanto os dados pessoais quanto imagens criadas.
Inclusive, esse é um direito assegurado pela legislação brasileira – LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), e mesmo que a empresa seja sediada internacionalmente, tal direito continua assegurado aos titulares de dados.
Leia outros artigos da autora:
COOKIES – o novo guia orientativo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados
A aplicabilidade da LGPD nas Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs)
Cultura cibernética – entenda os principais ataques cibernéticos e como proteger-se
Amanda Bruneli: Advogada OAB/PR | Direito Civil | Contencioso Civil | Consultora em Proteção de Dados | LGPD