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Prefixo 0303, livrai-nos das ligações indesejadas de telemarketing, amém!

Daniella P. Borges*

Helena Vasconcellos**

É impossível pensar em telemarketing sem lembrar do sketch de humor do canal Porta dos Fundos, em que o comediante Fábio Porchat, pintado de azul, chama incessantemente pela Judite. Sabemos que a visão que o brasileiro tem do telemarketing é, no mínimo, polêmica, e, por isso, achamos interessante falar sobre o tema sob o viés da privacidade, em especial em razão de recentes desdobramentos do assunto.

Porém, antes de mergulharmos na questão, gostaríamos de destacar que ela é multidisciplinar, uma vez que toca em temas de Marketing, Direito Administrativo, Direito do Consumidor, e Privacidade. E é sob a perspectiva desta última que iremos nos debruçar.

Prefixo 0303 no telemarketing ativo

Em Novembro de 2021, a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), uma autarquia especial vinculada ao Ministério de Comunicações (conforme art. 8º da Lei 9.472/97), publicou o Ato 10.413, que obriga as empresas de telemarketing ativo a usarem somente números de telefone com prefixo 0303, o chamado “Código Não Geográfico 303” ou “CNG 303”. Telemarketing ativo é quando se faz a oferta de produtos ou serviços por meio de ligações ou mensagens telefônicas, sejam elas previamente gravadas ou não. 

A medida entrou em vigor em 09 de junho de 2022. Com o advento do 0303, as teles passam a viabilizar a identificação clara, no visor do aparelho do usuário, desse prefixo que antecede o número. O seu uso padronizado é considerado uma ferramenta importante para o consumidor na identificação das chamadas de telemarketing ativo, que é visto por muitos como um dos grandes vilões das chamadas indesejadas. 

Isso porque, como diz a filosofia das ruas, “em tempos de WhatsApp, ligação é prova de amor”: as ligações reservam uma dose de imediatismo, pois exigem que se atenda imediatamente, com vistas a receber o chamado do outro. 

Quando este outro é um vendedor a oferecer algo que não é necessário naquele momento, infelizmente a ligação costuma importunar muitas pessoas. Esse é o motivador por detrás da exigência do 0303: identificar a chamada, permitindo ao titular da linha telefônica escolher se vai, de fato, atender.

Implicações do prefixo 0303

A medida tem implicações do ponto de vista de marketing e, também, sob o aspecto consumerista: 

a) em relação ao marketing, ela promete trazer mudanças para o setor de telemarketing como um todo, com o aumento no custo de leads (contatos gerados com o intuito de fomentar vendas), uma vez que as taxas de conversão de contatos (porcentagem de leads convertidos em contatos) tendem a cair com a rejeição de ligações, o que é uma consequência lógica; e 


b) sob o aspecto consumerista, uma vez que o prefixo 0303 é uma clara forma de proteção contra abusos sob a perspectiva do Código do Consumidor. Mas este não é o foco do presente artigo. 

Privacidade

Voltando ao tema da privacidade, enxergamos ser possível, inclusive, equiparar o prefixo 0303 ao chamado soft opt in, figura prevista no Código de Autorregulamentação para a Prática de E-mail Marketing, o CAPEM, de 2009, o qual prevê uma forma implícita de garantir o envio de comunicações empresariais a indivíduos com os quais já se tenha um relacionamento prévio estabelecido e, portanto, acesso aos dados. 

É uma forma mais suave de se fazer um opt in, quer dizer, obter a autorização para utilizar os dados de alguém para fins de inclusão em uma mala direta de e-mails: não se pede para entrar, uma vez que os dados já estão na posse de quem fez o envio do e-mail marketing, mas fica implícita a autorização, sempre se oferecendo a porta de saída, o chamado opt out.

Fizemos essa breve digressão, uma vez que, assim como o soft opt in do e-mail marketing, também aqui não se pede licença para discar: as ligações de telemarketing encontram esteio na regulamentação da ANATEL, mas prescindem de autorização prévia, permitindo ao sujeito, apenas e tão somente, bloqueá-las depois – através dos mecanismos que veremos mais à frente. 

Isso é importante destacar porque, em tese, se está violando, previamente, o right to be let alone do indivíduo, o famoso direito a ser deixado só. Conforme nosso artigo publicado neste portal no mês passado, intitulado “Existe ou não o Direito ao Esquecimento no Brasil?“,  o “direito a ser esquecido” (em inglês “the right to be forgotten”) surgiu de forma mais concreta com o ensaio de Warren & Brandeis, intitulado “The Right to Privacy” (em tradução livre “O Direito à Privacidade”), publicado na revista Harvard Law Review, em 1890, ocasião em que os autores falam pela primeira vez do que hoje entendemos por “the right to be let alone” (em tradução livre, “o direito a ser deixado só” ou “direito a ser deixado em paz”)”.

Só que, como conclui o aludido artigo, o Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário n° 1.010.606/RJ, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, julgado em fevereiro de 2021, jogou uma pá de cal no tema e entendeu que “o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal”.

Prefixo 0303 e direito a ser deixado só

Mas voltando ao tema central do presente artigo: para além das implicações consumeristas, de marketing, e etc., existe aqui uma clara contradição entre o mecanismo do 0303 e o direito a ser deixado só, visto que a legislação brasileira permite sim a ligação de telemarketing ativo feita aos titulares de dados, impondo apenas que a chamada seja feita através de número próprio, com o prefixo 0303. 

Na nossa visão, estamos diante de um dilema que demoramos a conseguir traduzir em palavras: em um primeiro momento, parecia uma questão de “conflito de direitos fundamentais”. A verdade, no entanto, é que mesmo nos trechos da Constituição Federal de 1988 em que se fala de supremacia do interesse público sobre o privado, essa supremacia tem que estar pautada em 5 princípios-chave: legalidade, impessoalidade, moralidade (um tanto contraditório, mas tudo bem – o que é “moral” e para quem?), publicidade e eficiência.

Interesses privados

Esses princípios-chave têm como premissa o fato de que o interesse público prevalece sobre o privado. Resta a dúvida se o prefixo 0303 não está fazendo prevalecer, ao fim e ao cabo, interesses privados sobre outros interesses privados, estes últimos sim fundamentais: se até mesmo um mandado de prisão de um réu confesso precisa respeitar a inviolabilidade da casa (“asilo inviolável”) e tem horário para ser cumprido (literalmente um limite de horas durante as quais nada justifica adentrar a casa de alguém), por que razão as “casas individuais” dos indivíduos, que são os seus aparelhos celulares nos dias de hoje, podem ser invadidos, a qualquer momento do dia ou noite, e mesmo nos finais de semana (24h por dia, 7 dias por semana), para que se ofereça ativamente serviços ou produtos que sequer foram solicitados?

Parece-nos que permitir o 0303 nada mais é do que “escancarar” o desejo das empresas de vender aquilo que não foi pedido, literalmente colocando um prefixo antes do número de telefone, o que na nossa humilde opinião pouco resolve. 

Entendemos que sensato foi o entendimento majoritário do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5962, que entendeu que uma lei do Estado do Rio de Janeiro que, à época, obrigava as empresas de telecomunicações a criarem um cadastro de clientes que não desejavam receber a oferta de produtos ou serviços por telefone, e exaltava a aparente dicotomia entre os direitos dos consumidores e o núcleo dos serviços de telecomunicações, campo de atuação privativa da União.

A Lei Estadual RJ 4.896/2006, em vigor até hoje, foi declarada, por maioria, constitucional na ADI, ocasião em que se proibiu ligações de telemarketing após as 18h nos dias úteis e em qualquer horário dos finais de semana e feriado. O que já foi um grande avanço, se comparado ao 0303.

O cerne do julgado da ADI é o brilhante entendimento de que a lei estadual citada está em consonância com o Código de Defesa do Consumidor, porque o seu objetivo é assegurar uma adequada e eficaz prestação de um serviço público. 

Telemarketing e prefixo 0303 na Lei Geral de Proteção de Dados

Então, permanece a dúvida: em qual interesse individual ou coletivo o prefixo 0303 está, de fato, embasado? Ousamos dizer mais: uma vez que entendemos que a Lei Geral de Proteção de Dados “será ainda maior do que o Código do Consumidor” (uma vez que, em um futuro talvez nem tão distante, estaremos todos no metaverso), há algo na LGPD que justifique tal ato?

Estas humildes autoras, que precisaram atender a um prazo para entregar o presente artigo (spoiler alert: haverá uma Parte II, devido à complexidade do tema), ainda não souberam responder a essa pergunta, e convidam a todos para reflexão. 

Visto isso, a pergunta que fica é: quais são, de fato, as implicações da Lei Geral de Proteção de Dados no tema do prefixo 0303, além de todas as já mencionadas? 

Bem, o primeiro ponto é que ela traz ao cliente a visão de que ele é quem está no comando e mesmo que seja somente após ser importunado por até 20 números por empresa, sendo 1 para a matriz e 19 para as filiais (e um Decreto da ANATEL permite que esses números aumentem em cerca de 10 vezes – ou seja, só a matriz facilmente poderia chegar a 10 números diferentes, dificultando o exercício do bloqueio por parte dos titulares de dados). Então, pedir o bloqueio dos números a posteriori, ou solicitar para cada ocorrência que o número do usuário seja retirado da lista de transmissão de telemarketing da empresa portadora do prefixo 0303, não nos parece uma medida assaz eficaz.

Respeitamos a sua privacidade e é por isso que fazemos este convite à reflexão.

Ps: na Parte II deste artigo, trataremos de temas como o Não Perturbe, as robocalls, spoofing, formas de defesa contra as ligações indesejadas em geral, penalidades que podem ser aplicadas às empresas e muito mais. Fiquem de olho!


Daniella P. Borges: Fundadora da Onda Live Marketing e consultora de Marketing da LGPDTalks, publicitária, MBA em Marketing e Gestão Empresarial em Marketing, Mestranda em Arquitetura, Urbanismo e Design pela Universidade Belas Artes de São Paulo.Professora de pós-graduação na Universidade Belas Artes de São Paulo e Master na ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing.

LGPDTalks: http://linktr.ee/lgpdtalks/

Helena Vasconcellos: Fundadora da LGPDTalks®. Privacy Enthusiast. Advogada e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Privacidade e Proteção de Dados desde 2003. Data Protection Officer (DPO) certificada pela EXIN, e em processo de certificação pelo IAPP. Colunista, Professora, Palestrante, Consultora e Voluntária em assuntos relacionados à privacidade e à proteção de dados.

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