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Quando dois hypes se encontram: apontamentos sobre proteção de dados pessoais no podcast “A mulher da casa abandonada”

Rodrigo Gugliara*

O Podcast “A Mulher da Casa Abandonada

Em 20 de julho de 2022, foi ao ar o último episódio do podcast “A mulher da casa abandonada”, da Folha de São Paulo. Embora uma significativa parte dos brasileiros tenha pelo menos ouvido falar, ainda que por cima, sobre o caso, me permito iniciar o texto com alguns pontos fáticos trazidos pelo podcast, sem realizar qualquer juízo de valor, que poderá ser feito pelos ouvintes em sua análise pessoal.

O podcast se inicia com o relato do jornalista responsável pelo seu desenvolvimento sobre o fato de que uma mansão, em estado de conservação muito ruim, situada em um bairro nobre da capital paulista, chamava muito sua atenção em seus passeios pela vizinhança. Certo dia, o jornalista retrata que encontrou a moradora da casa, que parecia abandonada, discutindo com funcionários responsáveis pela realização da poda de árvores e fazendo diversas acusações contra o Poder Público municipal e os envolvidos naquele ato.

Ao aprofundar sua investigação sobre a casa e a sua moradora, o jornalista citou o nome da moradora e afirmou que descobriu que ela esteve envolvida em uma investigação do Federal Bureau Investigation (órgão de Polícia responsável por investigação federal nos Estados Unidos da América) sobre exploração de trabalho escravo. Inclusive, ao diligenciar para aprofundar a investigação na terra do Tio Sam, verificou que o marido da mulher da casa abandonada (eram casados quando dos fatos, atualmente não mais o são) foi condenado, cumpriu sua pena nos Estados Unidos e nada mais deve à Justiça norte-americana.

Durante todos os episódios, vários trabalhos investigativos foram realizados e retratados para quem quiser ouvir. O nome da vítima foi mantido em sigilo e, em relação aos demais envolvidos, como a mulher da casa abandonada, seu ex-marido e testemunhas, os nomes completos foram citados em diversos trechos, além de outros dados que podem identificar tais pessoas.

Controvérsias criadas pelo podcast A Mulher da Casa Abandonada

Em tempos de sociedade da informação, o conteúdo que envolve crime, mistério e debates públicos sobre a exploração de trabalho análogo à escravidão levou milhares de pessoas a comentarem sobre o podcast, retratar o imóvel em questão e até mesmo a trazer a imagem da mulher da casa abandonada para as redes sociais.

Não demorou muito para surgir análises jurídicas do caso sobre a perspectiva do direito norte-americano, da aplicação extraterritorial da lei penal brasileira, do direito ao esquecimento, da proteção de dados e da ética jornalística.

No texto que trago hoje, concentrarei as linhas a seguir a interseção do caso com a proteção de dados.

Podemos identificar violação da LGPD pelo podcast e seus envolvidos?

Como já afirmei anteriormente, a presença de dados pessoais de diversos envolvidos é inquestionável. Durante os episódios, foram indicados nomes completos da mulher, do seu ex-marido e de testemunhas. Também foi bastante explorada a origem familiar da mulher que faz parte da história da capital paulista.

Aqui, aproveito para esclarecer que, apesar das considerações a seguir feitas, optei por não citar nomes ou dados pessoais dos envolvidos. Isso, pois é possível realizar uma análise jurídica imparcial e longe de paixões ou ódio por qualquer um que esteja, direta ou indiretamente, envolvidos com o caso ou com o podcast.

Retorno ao cerne do texto.

Também é possível identificarmos a existência de tratamento de dados pessoais pelo idealizador do podcast e pela empresa que o produziu e disponibilizou.

Na imprensa, já é possível verificar que existem operadores do direito utilizando a Lei Geral de Proteção de Dados para afirmar que o tratamento foi ilícito. E para identificarmos a correção (ou não) dessa informação, passo a trazer alguns fundamentos.

Proteção de dados x liberdade de imprensa

Tanto a proteção de dados pessoais quanto a liberdade de imprensa têm status constitucional. Por isso, o primeiro ponto relevante para respondermos ao questionamento, e a meu ver, mais importante, é o artigo 4º da Lei Geral de Proteção de Dados. O dispositivo legal elenca em quatro incisos, oito hipóteses em que a LGPD não se aplica. 

O inciso II, alínea “a” excepciona a aplicação da lei ao tratamento de dados pessoais realizado para fins exclusivamente jornalísticos e artísticos.

Isso, pois a liberdade de imprensa é um direito fundamental de relevante importância, que assegura o exercício da atividade que, nas palavras do Supremo Tribunal Federal “Não se pode ignorar que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e de comunicação, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, dentre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar a informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar.”

É o caso em questão.

O responsável pela criação e narração do podcast é um jornalista que trabalha há bastante tempo na Folha de São Paulo. É, também, formado em jornalismo, embora atualmente não seja necessária a formação acadêmica para assim ser considerado e utilizou seus conhecimentos para levar ao público uma história real, através de um dos instrumentos de comunicação de maior relevância atualmente. 

Nesse ponto, é importante lembrar que a lei excepciona o jornalismo exercido do seu âmbito de aplicação, independente do meio utilizado, portanto, ainda que o podcast seja um fenômeno recente, também será considerado uma forma legítima de exercício da atividade de informar e ser informado.

A finalidade, pelos menos apresentada até o momento, é exclusivamente jornalística, tal como previsto pela LGPD como hipótese de não aplicação da lei.

Quais os limites da atividade jornalística?

Então a atividade jornalística permite o tratamento de dados indiscriminadamente?

Não, não é por estar o tratamento de dados inserido no contexto de atividade jornalística que o tratamento de dados pessoais não terá nenhum limite.

O primeiro limite, já exposto, é que a atividade deve ser exclusivamente jornalística. Assim, se pensarmos que foi feito um podcast que será utilizado para, posteriormente, servir de marketing para, por exemplo, venda de cursos sobre storytelling, não estaríamos diante de uma atividade para fins “exclusivamente” jornalístico.

Outra restrição que também deve ser reconhecida ao tratamento de dados em cenário semelhante encontra respaldo no princípio da necessidade.

Somente estão excluídos da abrangência da LGPD os dados necessários ao desenvolvimento daquela atividade. O tratamento de dados que forem sobressalentes e não tiverem correlação com a atividade jornalística desenvolvida, sem dúvidas, estará sujeito aos preceitos da Lei Geral de Proteção de Dados.

Para finalizar…

Não é possível vislumbrar no podcast em questão nenhuma violação da Lei Geral de Proteção de Dados. Isso, pois foram utilizados os dados pessoais necessários ao desenvolvimento da atividade jornalística.

Inclusive, se ressalta a correta preocupação dos produtores do podcast com a proteção da vítima dos crimes retratados, que teve sua identidade preservada.

Embora o jornalismo não seja uma carta branca para o livre tratamento de dados, no caso concreto o tratamento se deu dentro dos limites da legalidade.

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Rodrigo Gugliara: Especialista em Direito Digital e Compliance pela Faculdade Damásio de Jesus (2017), graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2013) e Técnico em Informática pelo Colégio Singular (2008). Atuo como Assistente Judiciário no Tribunal de Justiça de São Paulo e sou Professor no Lab de Inovação da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Coordenei uma obra coletiva sobre Proteção de Dados e Responsabilidade Civil e sou autor de artigos jurídicos em assuntos correlatos ao direito digital.

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