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Existe um Legítimo Interesse da Criança e do Adolescente a Jogar?!

Helena Vasconcellos*

Victória Hellen Oliveira**

Eduardo Janibelli***

Pensemos no episódio de Black Mirror em que as pessoas são pontuadas pelas boas ações que fazem, mais ou menos tal qual já se faz hoje na China ou no Uber.

Pontuar atos, dar “badges” por missões cumpridas, tudo isso é gamificação. É transformar em lúdico o cotidiano, e premiar quem age conforme aquela organização/pessoa busca. 

Tudo fica “divertido”, e quando as pessoas se dão conta elas estão fazendo “check-in” nas redes sociais e informando os algoritmos onde estão, por exemplo. O tempo todo.

Nessa linha, com o advento do avanço tecnológico na sociedade contemporânea, observamos o aumento do número de crianças e adolescentes que estão investindo seu tempo e até dinheiro em jogos eletrônicos.

Não podemos negar que qualquer lugar em que os jovens possam estar em conjunto compartilhando experiências são espaços que os alienam da singularidade de cada um e, a partir disso, vai-se construindo um padrão de gostos e costumes que são lucrativamente estruturados dentro de uma sociedade, seja na escola ou em um parque de diversões, e até mesmo em um ambiente online. 

Jogos eletrônicos e dados pessoais

Contudo, ainda que algumas dessas crianças e/ou adolescentes não desembolsem valores, ainda há um preço a se pagar, pois os seus dados pessoais serão coletados e processados pelas empresas responsáveis pelos referidos jogos online. É a realidade que vivemos em uma sociedade digital que torna todos os indivíduos expostos, inclusive em gostos, preferências e até mesmo desejos mais íntimos.

Crianças e adolescentes são consideradas as duas categorias de pessoas nativas digitais, já que nasceram em um momento da história em que as tecnologias são realidade frequente, o que significa dizer que estão mais expostas aos problemas de uma sociedade tecnológica. 

Daí começa a preocupação com o legítimo interesse da criança e do adolescente a jogar, em especial online. De que dados eles vão abrir mão? Como é o Aviso de Privacidade? Que dados serão coletados? Como proteger a eles dos perigos da internet em um ambiente em tempo real?

Definição de Legítimo Interesse

Dentre as 10 (dez) bases legais previstas na Lei Geral de Proteção de Dados, está, por exemplo, o consentimento. O ponto é que ele é a mais frágil (porque pode ser revogada a qualquer tempo) e ao mesmo tempo a mais fácil de entender.

O artigo 7º, inciso IX, da LGPD, por sua vez, traz uma base legal que demanda um esforço interpretativo maior: o legítimo interesse do controlador ou de terceiro, o qual, para alguns doutrinadores, deve ser utilizado apenas como última opção para respaldar o tratamento de dados.

No entanto, o que seria um interesse legítimo? Legítimo para quem? Na nossa visão é quase como falar em “mulher honesta”, ou em outros conceitos jurídicos que pararam no tempo de Caio, Tício e Mévio.

Ser um conceito jurídico indeterminado abre margem para muita discussão. Um exemplo disso é a Lei de Entorpecentes, cujo próprio conceito de droga ilícita muda a cada nova portaria emitida. Basta perguntar aos nossos pais se “lança-perfume” era droga na década de 1970.

O art. 37 da LGPD, ratificando a falta de objetividade do conceito, requer que o controlador e o operador mantenham registro das operações de tratamento especialmente quando a base for o legítimo interesse. Aliás, em caso de LI, a ANPD pode solicitar ao controlador o Relatório de Impacto à Proteção de Dados, exatamente porque a questão não é objetiva e depende da observância ao próprio CDC no caso do controlador-fornecedor que objetiva o tratamento de dados com base em legítimo interesse, o qual antes de tudo deve ser um interesse lícito.

Legítimo interesse na GDPR

Na GDPR, também existe a base legal, que da mesma forma é objeto de inúmeras críticas e já foi estudada pelo chamado Grupo de Trabalho 29, o qual elaborou um parecer estabelecendo 4 fatores principais para a aplicação do LI, quais sejam:

a) A avaliação do interesse da pessoa responsável pelo tratamento;

b) A verificação do impacto nas pessoas envolvidas;

c) O exame do equilíbrio entre os interesses;

d) A análise de existência de garantias complementares para evitar impactos indevidos.

Os Considerandos 47 a 49 da GDPR também abordam o tema sempre sugerindo cautela e regras de ponderação de interesses. Voltando para a LGPD, o art. 11 não fala em LI e o Art. 10 apenas em dados pessoais. Mas, pela ordem de ambos os artigos, entende-se que em tese o LI não seria aplicável a dados sensíveis, que dependeria de observação do CDC. Guardem essa informação.

Conceito de Gamificação

A gamificação é a aplicação de estratégias de jogos nas atividades do dia a dia, com o objetivo de aumentar o engajamento de seus participantes. Todo jogo tem um objetivo que precisa ser cumprido e, para isso, os jogadores precisam superar seus próprios obstáculos. A psicologia por trás da gamificação revela que a conquista e a superação movem o ser humano.

Com o uso das novas tecnologias, é possível estimular o aprendizado, motivar comportamentos e criar uma sensação de recompensa, sendo o último responsável por alguns jogadores estarem viciados e gastarem horas e horas do seu dia em jogos online.

A origem do termo “gamification” é de 2002, e foi usado pela primeira vez pelo programador britânico PELLING, Nick, para se referir à transposição da mecânica dos jogos ao mundo real, visando engajar pessoas. Quem inovou e popularizou a gamificação foi CHOU, Yu-Kai, que, por 20 anos, pesquisou o comportamento das pessoas em relação aos jogos.

Um dos mais conhecidos exemplos de gamificação é o Foursquare, lançado em 2009 como um aplicativo de rede social de compartilhamento local. Quem nunca quis ser “Prefeito” da academia do bairro? Rs 

Os pesquisadores WERBACH, Kevin e HUNTER, Dan classificam os elementos da gamificação em 3 categorias: dinâmicas, mecânicas e componentes. Os elementos dinâmicos abrangem as características mais básicas do jogo, tais como a sua narrativa, as suas emoções, regras etc.

Os elementos mecânicos são definidos a partir das restrições do jogo, tais como a busca por novas “vidas” em um jogo do Super Mário Bros, os desafios, e as vitórias.

Por fim, os componentes são as aplicações mais específicas e concretas dos elementos da gamificação. Os mais comuns são do avatar ao chefão, passando pela missão do jogador.

Fala-se ainda nos arquétipos de jogadores, seus perfis, que foram classificados por BARTLE, Richard Allan em 4 arquétipos principais, dos socializadores aos assassinos.

Óbvio que já se identificou muitos benefícios da gamificação na educação, que vão desde o desenvolvimento da criatividade e colaboração, até a melhora de habilidades cognitivas, entre muitos outros. Nas escolas, pode-se gamificar desde a leitura até a participação em aula.

Nas empresas, além de aumentar a produtividade, a gamificação aumenta a motivação dos funcionários, desenvolve soft skills e por aí vai.

Jogar é um legítimo interesse da criança e do adolescente?

Desde o método MONTESSORI, em que se prioriza o aprendizado sensorial e simbólico por meio das atividades lúdicas, estimulando a imaginação das crianças, e fazendo com que ideias e questionamentos sejam despertados, até nos trabalhos de FREIRE, Paulo, e WAJSKOP, Gisela, fala-se nos benefícios de jogar. 

Para WAJSKOP, Gisela (2009), a brincadeira se configura como “uma atividade social, humana, que supõe contextos sociais e culturais, a partir dos quais a criança recria a realidade através da utilização de sistemas simbólicos próprios” (p. 28). Para FREIRE, Paulo, por sua vez, brincar é indispensável à saúde física, emocional e intelectual da criança.

Ou seja: se olharmos pela perspectiva de que o jogo melhora física, mental e emocionalmente o jogador, sendo um importante formador da personalidade de quem o pratica, nos parece que sim.

Claro que não estamos falando de todo e qualquer jogo. Uma criança que joga “Fazendinha” e um adolescente que joga Call of Duty certamente não extrairão os mesmos benefícios e aprendizados. Existem jogos e jogos.

E como já vimos que o arquétipo do jogador assassino é sim uma presença constante no mundo dos games, é preciso tomar muito cuidado. Até porque como já disse BIONI, Bruno, no painel do 7º Compliance Across Americas, os adolescentes, que são um “imbróglio”, foram esquecidos pelo art. 14 da LGPD. E sim, a doutrina defende que tudo é permitido no melhor interesse da criança. O problema está em chegar com precisão nesse conceito.

O outro ponto é que não podemos esquecer os benefícios, de um lado, dos jogos, e, de outro, os perigos da internet. E sim, trouxemos a questão ao debate, mas não temos uma resposta pronta. 

Crianças e jogos

“A atriz Giovanna Ewbank deixa filho de castigo por ter gastado mais de R$1 mil em jogos”. Esse é o título da matéria que circula em todos os meios tecnológicos e jornais.

Fernanda Paes Leme falou sobre a paixão dos mais novos por esse universo e mencionou o filho de Giovanna como um exemplo: “O Bless, por exemplo, é viciado em videogame. Ele liga sozinho, ele sabe mexer, ele sabe comprar o joguinho, ele sabe jogar”.

A partir da fala da amiga, Giovanna abriu o jogo: “Inclusive, ele está de castigo, está dois meses sem jogar videogame, porque ele sabe que não pode comprar games e aí ele pede. A gente vê se pode, se não tem muita violência. A apresentadora diz, então, que percebe a ansiedade do filho para voltar a jogar. “Está nervoso para voltar a jogar videogame… tadinho”, contou Giovanna. 

Em seguida, Fernanda revelou que o castigo foi uma espécie de estímulo para o menino, que começou a se concentrar em outras atividades e passatempos. “Ele passou a desenhar, desenha muito, Fagundes. Desenha super bem, passou a focar naquilo”.

Parental Control

A questão não é trazer uma fofoca, e sim, a seguinte reflexão: você já ouviu falar de crianças fazendo compras online com apenas um clique? Já ouviu falar em parental control (E não, não estamos falando da censura a filmes e discos de determinado conteúdo adulto)?

Os pais tendem a ser mais permissivos ao uso de dispositivos móveis em casa por serem nativos digitais, e a maioria desfruta das diversas tecnologias que o mundo digital pode nos proporcionar. 

Desse modo, cria-se uma mediação parental: a imitação. As crianças observam como seus pais se envolvem com os meios digitais e imitam a sua prática. LAURICELLA et al. (2015) revela que esse efeito pode ser denominado como “espelho” entre os pais e crianças, destacando o fato de que quanto mais jovem a criança for, mais elas tendem a reproduzir as práticas dos pais.

A partir disso, pode-se concluir que, de fato, os pais desempenham papel relevante e crucial na adoção de meios digitais pelas crianças, tendo em vista que as primeiras experiências de utilização de tecnologia se dão por intermédio dos pais. 

Alguns estudos sobre mediação parental abordam esse fenômeno ocorrido com meios digitais: LIVINGSTONE (2007) foi a primeira a sugerir a conceituação de  “regulação parental” para se referir aos pais que recorrem a papéis familiares para negociar regras e práticas relacionadas com a utilização de tecnologias. 

Geralmente, dá-se por meio de adaptação de regras já definidas em relação a utilização de televisão, por exemplo. O fato é que podemos dividir os pais em duas categorias: os que tendem a apoiar as práticas das crianças e adolescentes, e ensinam a superar as dificuldades; e os que tendem a controlar as suas práticas digitais (nesse caso, o controle é mais em relação ao tempo de utilização do meio eletrônico do que conteúdo em si).

Controle parental e meios digitais

No entanto, surge a necessidade de se acrescentar novos meios específicos de monitoramento para tecnologias digitais, como as ferramentas de controle parental, que funcionam a partir da conexão entre as contas dos pais e dos filhos. É necessário que os pais criem uma conta principal no serviço respectivo e depois inclua o perfil das crianças e adolescentes nos respectivos aparelhos utilizados.

Servem para literalmente controlar o conteúdo daquilo que será veiculado ao seu filho na internet. Dessa forma, a criança ou adolescente que tentar acessar algum conteúdo inapropriado para sua faixa etária ou realizar alguma (mini) transação em jogos online será impedida.

No entanto, as crianças e adolescentes tendem a ser mais competentes do que os pais, que estão muitas vezes alheios às medidas que podem tomar para proteger as crianças, como o “child mode” do YouTube. A maioria acredita que proibir o acesso é uma medida ineficaz, considerando que a melhor maneira de protegê-las de perigos online é com diálogo. 

O parental control é um modo de auxiliar os pais no envolvimento de dispositivos digitais de crianças e adolescentes, e deve ser considerado como parte ativa nesse processo de mediação. Existem vários “tutoriais” na internet de como utilizá-lo dependendo do meio eletrônico a ser controlado. Portanto, os pais devem ser vistos como modelos, protetores, supervisores e companheiros.

Riscos Inerentes aos Jogos, em especial Online

Bem, todo mundo sabe que a internet é terra de ninguém. Um lugar onde a engenharia social permite virtualmente qualquer coisa, e inocentes estão suscetíveis a coisas inimagináveis: de sexting a cyberbullying, a pedofilia, a sharenting, ao desafio da baleia azul etc., tem muita coisa polêmica envolvendo, em especial, os hipossuficientes, no caso as crianças e os adolescentes.

Isso sem contar o quanto alguns jogos eletrônicos em especial contribuem para tendências psicopatas, ansiedade, TDAH e outros transtornos, além de comprovadamente viciarem que os joga.

Portanto, o ideal é que os responsáveis pela criança e adolescentes pesquisem sobre os jogos eletrônicos que seus filhos estão jogando, compreendendo sobre o que se tratam os jogos online e suas respectivas bases de jogadores, bem como, na medida do possível, fiscalizem os jogos. 

ECA e CDC – “Tripla hipossuficiência” (Dados Sensíveis)

Fala-se em (hiper)hipossuficiência da criança e do adolescente que jogam. O motivo? Além de se aplicar o ECA e o CDC, está-se diante de dados sensíveis de natureza especial. 

Essa é a razão pela qual todo cuidado nunca é demais. Precisamos entender a melhor forma de viabilizar às nossas crianças e adolescentes o acesso ao mundo divertido dos jogos, porém sempre em segurança frente aos inúmeros perigos trazidos pela internet. 

Referências Bibliográficas 

BURKE, Brian. Gamificar: Como a gamificação motiva as pessoas a fazerem coisas extraordinárias. 2014.

CHOU, YU-Kai. Actionable Gamification – Beyond Points, Badges, and Leaderboards. 2015.

FADEL, Luciane Maria, ULBRICHT, Vania Ribas, BATISTA, Claudia Regina e VANZIN, Tarcisio (Organizadores). Gamificação na Educação. 2014.

SANTAELLA, Lucia, NESTERIUK, Sérgio e FAVA, Fabrício. Gamificação em Debate. 2018.

WAJSKOP, Gisela. O brincar na educação infantil. São Paulo: Cortez, 1995.

Lauricella, A., Wartella, E., & Rideout, V. (2015). Young children’s screen time: The complex role of parent and child factors. Journal of Applied Developmental Psychology, 36, pp. 11-17

Livingstone, S. (2007). Strategies of parental regulation in the media-rich home. Computers in Human Behavior, 23, pp. 920-941.

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Helena Vasconcellos: Fundadora da LGPDTalks®. Privacy Enthusiast. Advogada e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Privacidade e Proteção de Dados desde 2003. Data Protection Officer (DPO) certificada pela EXIN, e em processo de certificação pelo IAPP. Colunista, Professora, Palestrante, Consultora e Voluntária em assuntos relacionados à privacidade e à proteção de dados.

Victória Hellen Oliveira: Data Privacy Specialist na LGPDTalks®, Privacy Enthusiast e advogada. Especialista em Privacidade e Proteção de Dados. Colunista, Professora, Palestrante, Consultora e Voluntária em assuntos relacionados à privacidade e à proteção de dados.

Eduardo Janibelli: Advogado militante na área do Direito Privado, com ênfase no Direito Civil e Digital. Professor e palestrante Especialista em Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e em Direito Privado pela Faculdade LEGALE. Pós-graduando em Direito Digital pela Faculdade LEGALE

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