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As Indústrias de Games e o Tratamento de Dados Pessoais de Crianças e Adolescentes

Carla Oliveira Ribeiro*

Inicialmente, acredita-se como essencial demonstrar o exponencial crescimento da indústria de games no Brasil. De acordo com o nono levantamento anual realizado pela Pesquisa Game Brasil (PGB), 74,5% dos brasileiros disseram utilizar algum jogo eletrônico como método de distração – o que representa um aumento de 2,1 pontos percentuais em relação ao ano de 2021. A pesquisa foi realizada entre os dias 11 de fevereiro e 7 de março de 2022, ouviu 13.051 pessoas em 26 estados e no Distrito Federal, e findou por demonstrar, entre outras coisas, que 3 em cada 4 pessoas que vivem no Brasil fazem uso de algum tipo de jogo eletrônico.

Neste cenário, no que se refere à legislação, o Marco Legal dos Jogos Eletrônicos (PL 2.796/2021), projeto de lei que regulamenta a fabricação, importação, comercialização e desenvolvimento dos jogos eletrônicos no Brasil, foi aprovado pela Câmara dos Deputados, em 19 de outubro de 2022, e aguarda apreciação pelo Senado. De acordo com os dados citados pelo relator, deputado Darci de Matos (PSD-SC), o mercado nacional de games teria alcançado o equivalente a US$ 1,5 bilhão em 2018, situando o Brasil na 13ª colocação em nível global. “Não resta dúvida de que há enorme potencial ainda inexplorado nesse segmento econômico no país”, disse o relator.

Portanto, é neste contexto de amplitude que se percebe a extrema necessidade de que as indústrias de games estejam adequadas à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), principalmente porque, sabidamente, uma parte considerável da população que utiliza os jogos eletrônicos é composta por crianças e adolescentes – personagens a quem a LGPD confere requisitos específicos para que o tratamento de dados pessoais possa ser realizado.

LGPD e Estatuto da Criança e do Adolescente

Deste modo, para que sejam adotadas as medidas corretas e alinhadas ao que dispõe o artigo 14 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, torna-se imprescindível o esclarecimento quanto aos indivíduos a quem a lei estabelece como criança e adolescente.

Conforme preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), em seu artigo segundo, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

Assim, no que se refere ao tratamento de dados pessoais dos usuários que possuam até dezoito anos de idade, as indústrias de games deverão ter processos e procedimentos ainda mais elaborados, inclusive no que se refere a elaboração de termos de uso, avisos de privacidade e monetização dos jogos.

Do Tratamento de Dados Pessoais de acordo com o Melhor Interesse da Criança e do Adolescente

Como se verifica no caput do artigo 14 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes deve ocorrer em seu melhor interesse. 

Constata-se, então, que tal dispositivo caminha lado a lado com o artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), que  determina que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.

Ainda neste sentido, o legítimo interesse da criança e do adolescente também pode ser encontrado na Constituição Federal do Brasil/88, que dispõe em seu artigo 227 que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”   

Diante disso, constata-se que, de acordo com o princípio do melhor interesse do menor, a criança e o adolescente devem ser preservados ao máximo, pois encontram-se em situação de fragilidade, estando em processo de formação de sua personalidade e possuindo o direito de chegar à condição adulta sob as melhores garantias.

Assim sendo, independentemente da motivação que o controlador* tenha ao realizar o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, o interesse destes irá prevalecer sobre qualquer outro, em especial quando se estiver diante de interesses comerciais.

Da Minimização dos Dados e do necessário Consentimento de um dos pais ou responsável para o Tratamento de Dados Pessoais de Crianças

É indiscutível que crianças não possuem maturidade para discernir o impacto do fornecimento de suas informações pessoais a terceiros. Diante deste fato, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais determina que será necessário o consentimento de um dos pais ou responsável para que haja o tratamento de dados pessoais de crianças, dispondo, ainda, que tal consentimento deverá ser específico e em destaque. Além disso,  impõe que deverá ser mantida pública a informação sobre os tipos de dados coletados, a forma de sua utilização e os procedimentos para o exercício dos direitos a que se refere o artigo 18 desta lei**

Outrossim, a LGPD impõe que o controlador deve realizar todos os esforços razoáveis para verificar que o supramencionado consentimento foi dado pelo responsável pela criança, considerando as tecnologias disponíveis, o que, apesar dos inúmeros avanços tecnológicos, pode ser um grande desafio nos dias atuais.

Especificamente em relação à proteção dos dados pessoais no que se refere aos jogos, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), em seu artigo 14, parágrafo 4º, estipula o princípio da minimização dos dados, proibindo que os controladores condicionem a participação de crianças em jogos, aplicações de internet ou outras atividades, ao fornecimento de dados pessoais além dos que sejam estritamente necessários à execução daquela atividade.

O Direito das crianças à privacidade

Ainda no que diz respeito à necessidade de resguardar a privacidade da criança e do adolescente, o Instituto Alana, em parceria com a InternetLab, desenvolveu o relatório “O Direito das crianças à privacidade e ao desenvolvimento da autodeterminação informacional das crianças”***, no qual aborda os perigos da exploração comercial de dados pessoais de crianças e adolescentes (tal como o direcionamento de publicidade comportamental), coletas de dados pessoais, coletas de dados biométricos e outras violações de direitos de crianças e adolescentes.

O mencionado estudo destaca, ainda, como a coleta e tratamento massivos de dados pessoais de crianças e adolescentes no uso de plataformas digitais representa riscos à sua segurança e integridade física e psíquica, considerando as possibilidades de vazamentos ou de exposição indevida dessas informações.

Logo, vê-se que não é lícito ao controlador impor a obrigatoriedade do preenchimento de inúmeros dados pessoais que não sejam necessários à execução do jogo ofertado, devendo restringir-se a solicitar, tão somente, os dados que sejam estritamente necessários, sem jamais perder de vista o melhor interesse da criança e do adolescente.

Consentimento nulo

De igual modo, ainda que sejam tratados os dados pessoais mínimos para a execução do jogo, mas não haja a comprovação de que o consentimento para a realização do tratamento de dados pessoais fora outorgado pelo responsável legal da criança, o consentimento será nulo e, por consequência, o referido tratamento não apenas deverá ser descontinuado como será considerado ilícito. Neste caso, a culpabilidade do controlador poderá ser excluída quando este comprovar que realizou todos os esforços possíveis para evitar o referido engano, nos termos do artigo 14, parágrafo 5º, da LGPD.

Da forma correta de disponibilização das informações relativas ao tratamento de dados pessoais

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) não especifica um modelo no qual as informações devam ser disponibilizadas ao titular dos dados pessoais. No entanto, a LGPD determina que as informações sejam disponibilizadas de forma simples, clara e acessível, devendo ser consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, com uso de recursos audiovisuais quando adequado, de forma a proporcionar a informação necessária aos pais ou ao responsável legal e adequada ao entendimento da criança.

Dessa forma, significa dizer que as informações fornecidas pelo controlador deverão ser simples, claras e acessíveis, de tal maneira que a criança e o adolescente – os reais usuários e titulares dos dados pessoais – consigam entender, entre outras coisas, que dados pessoais estão recebendo tratamento, a finalidade do tratamento realizado e o que acontecerá com os seus dados quando o tratamento for encerrado.

Assim, constata-se que as indústrias de games não devem adotar termos de uso e/ou políticas de privacidade que possuam inúmeras páginas e vocábulos que são de difícil compreensão, pois isso configura completo desacordo com o que estabelece a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018).

No entanto, como bem preceitua a LGPD, em seu artigo 14, parágrafo 6º, o controlador (as empresas de games, por exemplo) poderá adotar recursos audiovisuais para o fornecimento das informações relativas ao tratamento dos dados pessoais de crianças e adolescentes. 

Assim, com a finalidade de cumprir as exigências contidas na LGPD, as empresas de games poderão, por exemplo, valer-se do próprio ambiente virtual para demonstrar e explicar para aquela criança e/ou adolescente o que são dados pessoais, quais deles são tratados naquele jogo, qual a finalidade do tratamento e que ocorrerá com os dados fornecidos quando o jogo for encerrado.

Observações Finais

Tendo em vista os aspectos observados, objetivou-se demonstrar a evidente necessidade de que as indústrias de games estejam adequadas à LGPD – tanto pela amplitude de dados que podem obter de seus usuários quanto pelo fato de que grande parte de seus usuários é composta por crianças e adolescentes que, em razão de sua incontroversa vulnerabilidade, necessitam de maior proteção. 

Neste momento, a indústria de e-games cresce a passos largos e torna-se cada vez mais presente no dia a dia das novas gerações, sendo responsável, inclusive, por agregar novas profissões ao mercado de trabalho, como os e-gamers profissionais. Deste modo, é imprescindível que tamanho crescimento esteja alinhado com todos os princípios contidos na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.  

Por último, mas não menos importante, ressalta-se que a adequação das indústrias de e-games traz inúmeros benefícios a estas empresas – benefícios que vão desde a melhoria de seus processos e procedimentos até a valorização de sua marca no mercado -, já que o respeito à privacidade do cliente, indubitavelmente, traz uma majoração no grau de confiabilidade da empresa e, por conseguinte, melhora o relacionamento com seus clientes. 

Referências:

Pesquisa Game Brasil (PGB), desenvolvida pelo Sioux Group e Go Gamers em parceria com Blend New Research e ESPM.

https://www.meioemensagem.com.br/home/midia/2022/04/18/no-brasil-publico-de-games-corresponde-a-745-da-populacao.html – acesso em 19 de novembro de 2022.

Fonte: Agência Senado: 

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/10/20/marco-legal-para-industria-de-jogos-eletronicos-vem-ao-senado#:~:text=A%20C%C3%A2mara%20dos%20Deputados%20aprovou,ser%C3%A1%20agora%20analisado%20pelo%20Senado. – acesso em 19 de novembro de 2022.

https://internetlab.org.br/pt/noticias/riscos-a-privacidade-digital-de-criancas-e-adolescentes-no-brasil-relatorio/ – acesso em 19 de novembro de 2022.

* Controlador é toda pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais (Artigo 5º, inciso VI da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – Lei 13.709/2018).

** Artigo 14, §§ 1º e 2º, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018).

*** INSTITUTO ALANA; INTERNETLAB. O direito das crianças à privacidade: obstáculos e agendas de proteção à privacidade e ao desenvolvimento da autodeterminação informacional das crianças no Brasil. Contribuição conjunta para o relator especial sobre o direito à privacidade da ONU. São Paulo, 2020.

Leia outro artigo da autora:

16 medidas essenciais, com baixo investimento, para implementar na adequação do seu negócio à LGPD


Carla Oliveira Ribeiro: Advogada e Consultora nas áreas de Privacidade e Proteção de Dados, Negociação e Direito Desportivo. Pós-Graduada em: Direito Digital e Proteção de Dados pela Escola Brasileira de Direito; Direito Desportivo, pela Universidade Cândido Mendes; e Direito Negocial e Imobiliário, pela Escola Brasileira de Direito.

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