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Geolocalização, produção de prova e privacidade 

geolocalização

Guilherme Gonçalves Pereira*

Recentemente, notícias de uso da geolocalização de aparelhos de telefone como meios de prova em processos trabalhistas tomaram conta dos noticiários jurídicos.

Caso essa informação seja nova para você, basta fazer uma busca com as expressões “geolocalização + dados + trabalhista + decisão” para verificar que esse debate está quente.

Neste texto, comentaremos brevemente sobre algumas decisões, todas no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (TRT12), em que o pedido de uso da geolocalização foi trazido ao processo e quais os argumentos utilizados para (in)deferimento da prova requerida.

Os casos em análise tratavam de discussão sobre a realização de horas-extras pelos trabalhadores, sendo que os pedidos foram feitos tanto por empregados, quanto por empregadores.

Prova de geolocalização e questões processuais

É verdade que, apesar da discussão de direito, deve-se atentar às questões processuais. Por conta disso, não foram isolados os casos em que a prova de geolocalização foi pleiteada, mas indeferida e não reapreciada em recurso por ausência de impugnação ou protesto no momento cabível. Nestes casos, o recurso foi improvido no ponto pela técnica processual (vide processos 0000867-62.2019.5.12.0003 e 0000254-93.2021.5.12.0028, por exemplo).

Também houve preterição da prova quando o juízo entendeu que as provas orais ou documentais existentes já eram suficientes ao convencimento do julgador (casos dos processos 0000172-26.2022.5.12.0061 e 0000793-80.2018.5.12.0055).

O tema de uso do GPS para as horas-extras também foi debatido em processos nos quais, em tese, o pagamento das horas extraordinárias é indevido pela natureza do trabalho desempenhado (art. 62, I, CLT). Há julgados que descaracterizam a situação em razão do uso de sistemas com GPS, pelo qual o empregador pode “monitorar” o trabalho do empregado, mas também julgados que consideram essa condição insuficiente para a concessão das horas extraordinárias (vide processos 0001522-69.2018.5.12.0035 e 0000093-44.2021.5.12.0041, respectivamente).

Privacidade e outros meios de prova

No que pertine à análise do mérito do uso da geolocalização na produção de provas, em contraponto à privacidade, temos divergência sobre a necessidade de seu uso frente a outros meios de prova capazes de suprir o convencimento do julgador, bem como a própria invasão da privacidade do empregado.

Em caso julgado no ano de 2021, processo 0000658-34.2021.5.12.0000, argumentou-se que o juízo deve “observar se essa prova específica se faz necessária por absoluta ausência de outros meios para comprovar os mesmos fatos, ou ainda se os meios até então utilizados não foram suficientes a espancar as controvérsias estabelecidas na lide”, seguindo-se que ao requerente da prova cabe “apresentar contundente argumentação de que os fatos que pretende comprovar não podem ser demonstrados de outra forma, ao que deverá o Juízo, igualmente, justificar motivadamente a utilização desse meio”.

Aqui, talvez, exista uma interpretação equivocada, pois, na sequência, é citado o julgado do STF no MS 38061 MC/DF, destacando-se na decisão do TRT12 que “o tratamento de dados pessoais sensíveis deve ser precedido de cautelas maiores, uma vez que eventual publicização desses tipos de dados pode trazer consequências mais gravosas aos direitos e liberdades de seus titulares. Nesse contexto, o art. 11, II, d, dispõe que o tratamento de dados pessoais sensíveis poderá ocorrer nas hipóteses em que for indispensável para o exercício regular de direitos, inclusive em processo judicial, administrativo e arbitral. A referida lei, embora não se dirija especificamente à disciplina das atividades de investigação, trouxe no art. 4º, § 1º, que tais medidas devem ser ‘proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público’” (grifo na decisão do TRT).

Ao final, concluiu-se que a “preservação da intimidade e do sigilo de dados de telefonia” prevaleceria sobre o interesse na produção da prova.

Dados sensíveis x geolocalização

Aparentemente, apesar da fundamentação citar expressamente os artigos 7º, 10 e 12 da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet), a decisão levou em consideração que os dados em análise são “dados sensíveis” no conceito trazido pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD, Lei 13.709/2018) e, nesses casos, de fato, a legislação afirma que os dados sensíveis, na ausência de consentimento, só podem ser tratados quando “for indispensável” para, dentre outros, “o exercício regular de direitos”. (art. 11, II, d).

Entretanto, a geolocalização não se enquadra como dado pessoal sensível (art. 5, II) e, portanto, a dispensa do uso da geolocalização, em razão da possibilidade de uso de outros meios de prova, parece inadequada.

Isso, porém, não significa dizer que as medidas devam ser adotadas de forma apressada, sem análise de “proporcionalidade”, como bem apontado no julgado e, da mesma forma, cercadas de cuidados para que a exposição do titular dos dados não acarrete à sua privacidade, sua vida privada, danos superiores ao benefício que a prova pode trazer ao processo.

Inclusive, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), na Resolução CD/ANPD 2/2022, dispôs que ‘será considerado de alto risco o tratamento de dados pessoais que possa afetar significativamente interesses e direitos fundamentais dos titulares, bem como que impliquem em vigilância’ (art. 4º, I, b e II, b).

Tratamento legítimo

Assim sendo, o tratamento de dados de geolocalização, ainda que no âmbito de processos judiciais, deve sim ser precedido de ponderação quanto ao risco trazido ao titular de dados, impondo-se salvaguardas para que o tratamento seja legítimo. Ademais, são princípios da LGPD a “segurança” (art. 6º, VII) e a “prevenção” (art. 6º, VII).

Diferentemente do caso anterior, nos processos 0000955-41.2021.5.12.0000 e 0000114-12.2022.5.12.0000, ambos do ano de 2022, utilizou-se das premissas da LGPD para permitir a produção da prova.

Prevalência do meio digital como prova

Dentre as razões adotadas, uma delas é justamente a prevalência do meio digital frente aos meios tradicionais de prova, pois “mais eficaz do que a prova testemunhal na busca da verdade real” e por ser “ferramenta eficiente em determinados casos, até pela sua objetividade e confiabilidade”, muito embora “não visa substituir os meios já utilizados”.

Como se vê, as decisões entenderam utilizar a prova digital pela sua eficiência e confiança, justificando-se seu uso, inclusive, pela necessidade de duração razoável do processo.

Da mesma forma, já que o ‘tratamento de dados pessoais será irregular quando não fornecer a segurança que o titular dele esperar’ (art. 44), o primeiro julgado estabeleceu os limites de produção de prova, pois a “prova digital será anexada aos autos sob sigilo e será produzida por amostragem”, estabelecendo-se intervalos para a coleta, sendo seu acesso restrito às partes, bem como “não se terá, por essa específica prova digital, acesso a conversas ou à imagem de quaisquer das partes ou terceiros”.

No segundo julgado, de forma bem interessante, é citada uma ferramenta desenvolvida pela “Seção de Provas Digitais do TRT/SC (Painel – Dashboard), por meio da qual se permite a visualização em mapa e a filtragem dos dados de localização de uma conta Google, se torna um instrumento útil e apto a influenciar na convicção do juiz e, consequentemente, no resultado do julgamento, a partir das postulações e defesas suscitadas pelas partes”.

Ferramenta para auxílio dos julgadores

Quanto aos aspectos de segurança dessa ferramenta, nada foi trazido no julgado e nem foi possível averiguar tal condição no processo. Fato é que o próprio TRT12 mostra uma postura de adequação de sua atividade aos tempos atuais quando desenvolve ferramenta específica para o auxílio dos julgadores em suas atividades.

No que toca ao fundamento do tratamento, elementarmente, sua justificativa se deu com base no exercício regular de direito, mesmo que a prova tenha sido requerida pelo empregador.

Apesar das divergências nas decisões, é certo que o uso da prova digital será cada vez mais requisitado, pois vivemos em sociedade cada vez mais digital e a tecnologia permeia todas as suas atividades. 

O uso da prova digital, por outro lado, deve observar as medidas de segurança e ser delimitado de forma que preserve a privacidade e proteção aos dados dos titulares de dados envolvidos.


Guilherme Gonçalves: CIPM (Certified Information Privacy Manager) e CDPO BR (Encarregado de Proteção de Dados Certificado no Brasil), pela International Association of Privacy Professionals (IAPP); Lead Implementer da Gestão da Privacidade da Informação (Baseado na ABNT NBR ISO/IEC 27701), pela Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT; Pós-graduado em Direito Digital e Compliance (Damásio); Integrante da Comissão de Comunicação Institucional do Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD); Advogado OAB/SC 20.807.

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