Lidiane Leles*
Mírian Lima**
A série Black Mirror é um dos maiores sucessos da Netflix, especialmente para quem adora filmes e séries sobre ficção científica, mas o que nos chama a atenção é como o episódio “Joan é Péssima” aborda de forma humorística as situações cotidianas relacionadas ao uso da tecnologia e redes sociais, enquanto também levanta questões sobre a importância da proteção dos dados pessoais, uma vez que a personagem principal que leva uma vida mediana se depara com um serviço de streaming que acaba fazendo uma série sobre a sua própria vida.
A série conta a história de Joan, uma jovem que se depara com situações surpreendentes ao descobrir que sua vida está sendo transmitida pelo Streamberry, um serviço de streaming muito parecido com a famosa plataforma Netflix. O choque inicial de ver sua vida sendo replicada é intensificado quando ela descobre que um algoritmo de inteligência artificial criou o roteiro de sua vida.
Conforme a trama se desenrola, a protagonista se vê em uma situação desagradável, pois sua vida é moldada pelo algoritmo do Streamberry para agradar ao público da plataforma. Como resultado, Joan tem sua intimidade exposta e sua história contada de maneira distorcida, transformando-a em uma espécie de “vilã” na história.
É importante ressaltar que esse episódio de Black Mirror foi inspirado em casos reais recentemente destacados na mídia. O criador da série, Charlie Brooker, revelou que adaptou a trama com base no caso da CEO da Theranos, Elizabeth Holmes, cuja startup prometia revolucionar a indústria médica por meio de tecnologia inovadora. Essa história foi adaptada para a série de televisão “The Dropout” e serviu de ponto de partida para o enredo de “Joan é Péssima”.
Série, LGPD e coleta de dados
Destaca-se que a Lei Brasileira nº 13.709/2018 (LGPD) tem como objetivo proteger a privacidade e os direitos dos cidadãos em relação à coleta, armazenamento e uso de seus dados pessoais pelas empresas. No caso de Joan, sua falta de leitura dos termos de uso da plataforma resultou na transferência involuntária dos direitos de sua imagem e na exposição de sua vida.
O episódio também aborda questões atuais e preocupantes, como a coleta de dados por meio de dispositivos eletrônicos, como telefones celulares e smart TVs, e o avanço dos deepfakes. Os deepfakes são uma tecnologia que utiliza inteligência artificial para criar conteúdo falso plausível, como vídeos manipulados para se parecerem com pessoas reais. Essa tecnologia pode ser usada para manipulação e propagação de informações enganosas, representando riscos para a privacidade e a confiança na sociedade.
Outra crítica apresentada no episódio é em relação aos termos de uso e à responsabilidade das empresas. Muitas vezes, esses termos são extensos e complexos, dificultando a leitura completa por parte dos usuários. Muitas pessoas não conseguem ler esses termos na íntegra ou compreendê-los completamente, resultando em um consentimento concedido para acesso e controle excessivo de seus dados pessoais de forma indiscriminada.
Você na Netflix!
Imagina se você pudesse ter sua própria série personalizada no Streamberry, com todos os seus segredos revelados? Você aceitaria? Isso já é possível!
É importante destacar a iniciativa da Netflix em lançar a plataforma Streamberry, inspirada em um episódio de “Black Mirror”, oferecendo aos fãs uma experiência personalizada. No entanto, antes de participar, é essencial que os interessados entendam os termos e condições de uso que envolvem essa plataforma.
Ao acessar a plataforma online do Streamberry e enviar uma foto pessoal, os usuários concordam com os termos e condições estabelecidos. É fundamental analisar minuciosamente esses termos antes de prosseguir, pois eles podem conter cláusulas relacionadas à coleta, uso e compartilhamento de dados pessoais, incluindo o nome e a imagem dos participantes para fins de campanhas publicitárias, conforme mencionado na campanha de marketing da Netflix.
Além disso, é fundamental ressaltar que o episódio “Joan é Péssima” aborda questões relevantes, como deepfakes, identidade, privacidade e a manipulação dramática da realidade pela mídia. Esses temas nos lembram da importância de questionar e refletir sobre o consentimento ao concordar com os termos e condições online.
Caso você esteja interessado em participar dessa experiência personalizada no Streamberry, veja nossa análise sobre alguns pontos interessantes dos termos e condições de uso dessa plataforma. Assim, você poderá tomar uma decisão informada, considerando os riscos envolvidos.
Análise:
Em geral, a política de privacidade parece abordar os principais aspectos relacionados à coleta e uso de informações pessoais. No entanto, algumas questões podem ser consideradas:
- Consentimento: A política refere-se ao uso de informações com base no consentimento do usuário, mas é importante garantir que o consentimento seja obtido de forma clara, específica e informada conforme exige a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ou outra legislação de proteção de dados aplicável.
- Transferências internacionais de dados: A política menciona a possibilidade de transferir informações pessoais para países fora da região onde o usuário está localizado, mas não especifica quais salvaguardas existem para garantir que essas transferências cumpram as leis de proteção de dados.
Se a Netflix compartilha informações pessoais com entidades localizadas fora do Brasil, a política de privacidade deve abordar esse aspecto e fornecer garantias adequadas para proteger os dados pessoais durante a transferência. É importante que haja um mecanismo legal para transferências internacionais, como cláusulas contratuais padrão, garantias de privacidade ou o uso de países considerados adequados pela autoridade de proteção de dados.
Direitos do usuário:
Embora a política mencione os direitos do usuário, é importante fornecer informações claras e detalhadas sobre como exercer esses direitos, como entrar em contato com a empresa e os tempos de resposta.
Uma cláusula chamativa e preocupante que nos chamou atenção é a que exige a cessão gratuita de todos os direitos autorais e outros direitos de propriedade intelectual relacionados ao conteúdo que você envia.
Ao concordar com essa cláusula, você está concedendo à Netflix uma licença abrangente sobre o seu trabalho, sem exigir qualquer compensação financeira. Isso significa que a plataforma pode usar, modificar e lucrar com o seu conteúdo sem a necessidade de remunerá-lo adequadamente. Essa prática, embora legal, levanta questões sobre a justiça e os direitos dos criadores de conteúdo.
A Lei de Direitos Autorais em seu artigo 50 estabelece que a cessão dos direitos autorais presume-se onerosa, ou seja, deve haver uma contrapartida financeira pelo uso do seu trabalho. No entanto, ao exigir a cessão gratuita de direitos, a Netflix está se aproveitando dos direitos patrimoniais do autor, gerando uma discussão sobre a legalidade dos limites da cessão desses direitos nesse contexto.
Retenção de dados:
A política de privacidade deve estabelecer um período de retenção claro para os dados pessoais coletados. Isso garante que as informações sejam mantidas apenas pelo tempo necessário para cumprir as finalidades para as quais foram coletadas. A política não especifica um período de retenção específico, o que poderia ser uma área a ser melhorada para maior transparência.
Como usuários, devemos sempre ler e compreender as políticas de privacidade, analisar cuidadosamente os termos de uso e estar cientes dos nossos direitos de privacidade. Além disso, é fundamental exigir transparência e responsabilidade por parte das empresas em relação à proteção dos nossos dados pessoais.
Proteger nossa privacidade é um direito fundamental, e cabe a nós estarmos informados, conscientes e ativos na defesa desse direito. Somente assim poderemos desfrutar das vantagens e das maravilhas que a tecnologia nos oferece, sem comprometer nossa privacidade e segurança.
Como criar uma série
Quer saber como criar sua própria série no Streamberry, inspirada em Black Mirror? Siga o guia passo a passo abaixo:
1 – Acesse o site oficial do Streamberry: https://youareawful.com/
2 – Procure pela opção “Faça parte da família Streamberry” e clique nela.
3 – Preencha seu primeiro nome e envie uma foto sua para ser usada como capa da sua série personalizada.
4 – Por fim, se quiser, compartilhe sua obra nas redes sociais usando a hashtag #YouAreAwful.”
Lembre-se de que é sempre importante verificar os termos e condições do Streamberry antes de prosseguir, para garantir que você esteja ciente das políticas de privacidade e uso de dados.
Referências bibliográficas
DESCOBERTA DE DADOS PARA PRIVACIDADE. Disponível em: https://www.onetrust.com/br/blog/descoberta-de-dados-para-privacidade/. Acesso em: 27/06/23.
Referência 2: BLACK MIRROR: site da Netflix permite criar sua própria série; saiba mais. Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/minha-serie/265441-black-mirror-site-netflix-permite-criar-propria-serie-saiba.htm. Acesso em: 26/06/23.
Referência 3: LGPD – O que é a LGPD?. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/servicos/lgpd/o-que-e-a-lgpd. Acesso em: 27/06/23.
Referência 4: PROTEÇÃO DE DADOS E A EFICÁCIA DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-protecao-de-dados. Acesso em: 20/06/2023.
Referência 5: STARTUP QUE PROMETIA REVOLUCIONAR A INDÚSTRIA MÉDICA. Disponível em: https://canaltech.com.br/series/black-mirror-episodio-mais-perturbador-da-temporada-6-e-baseado-em-caso-real-253112/. Acesso em: 20/06/2023.
Referência 6: TECNOLOGIA QUE USA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA) PARA CRIAR. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2018/07/o-que-e-deepfake-inteligencia-artificiale-usada-pra-fazer-videos-falsos.ghtml. Acesso em: 20/06/2023.
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Mirian Lima: Coordenadora da ANPPD Regional São Paulo. Coordenadora Geral ANADD. Professora e Consultora em Proteção de Dados. Formada em Direito pela PUCPR. Pós-graduada em Direito Constitucional Tributário e Privacidade de Dados (FAMESP). Membro do Grupo de Pesquisa LGPD da PUCPR. Membro da Comunidade Mulheres da LGPD. Fundadora do METASAFE
Lidiane Leles: Advogada Especialista em Direito Digital, Privacidade e Proteção de Dados, Compliance e Direito Empresarial. Data Protection Officer. Sócia-Fundadora do Escritório Lidiane Leles Advogados. Pós- Graduada em Contratos Empresariais pela Fundação Getúlio Vargas e em Direito Processual (Cível e Penal), Máster em Direito e Business Law pela FGV. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre a LGPD da Comissão de Estudos de Compliance da OAB/SP. Fundadora da Associação Nacional de Advogadas e Advogados de Direito Digital (ANADD) e da Comunidade Mulheres da LGPD.