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Existe ou não o “direito ao esquecimento” no Brasil?

Por Helena Vasconcellos*

A pena não era o esquecimento, mas sim o espetáculo”, diz o feliz artigo da Juíza Federal da 4ª Região Luciana Bauer, referindo-se à forca, à fogueira e à guilhotina na Idade Média, em contraponto à época da prisão de Dostoiévski, em que o cárcere era um verdadeiro esquecimento. Desde que o mundo é mundo fala-se na dicotomia entre o direito à informação e o direito à privacidade

Na verdade, o “direito a ser esquecido” (em inglês “the right to be forgotten”) surgiu de forma mais concreta com o ensaio de Warren & Brandeis, intitulado “The Right to Privacy” (em tradução livre “O Direito à Privacidade”), publicado na revista Harvard Law Review, em 1890, ocasião em que os autores falam pela primeira vez do que hoje entendemos por “the right to be let alone” (em tradução livre, “o direito a ser deixado só” ou “direito a ser deixado em paz”), dizendo a famosa (e atual) frase, no sentido de que “inúmeros dispositivos mecânicos ameaçam concretizar a previsão no sentido de que o que é sussurrado nos armários deve ser proclamado do topo das casas”. Guardem essa informação: essa frase foi escrita em 1890, embora facilmente se aplique aos dias de hoje. 

Sabemos que o conceito evoluiu, chegando a fazer parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, que de certa forma tocou no tema ao prever, em seu artigo 12, que “ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. (…)”.

Para mim, particularmente, os conceitos de “direito à privacidade” e “direito ao esquecimento” me foram apresentados, pela primeira vez, em 2003, enquanto fazia o meu Trabalho de Conclusão de Curso (o famoso TCC) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o vírus do HIV ainda era um tabu, e a internet se movia a passos de tartaruga.

Direito à privacidade” e seguros de saúde

Lembro que me deparei com um estudo, feito nos Estados Unidos, que constatou que empresas de seguro saúde e seguro de vida americanas estavam negando apólices de seguro para pessoas que tivessem acessado sites sobre HIV nos últimos 6 meses. Minha indignação com este fato resultou no TCC intitulado “A Violação da Intimidade na Era Digital: Cookies e os Bancos de Dados Virtuais”, em que enderecei exatamente este tema.

Exclusão de dados no Google

Desde então, muita coisa aconteceu. A internet evoluiu a ponto de as coisas começarem a “viralizar”, e, em 2009, o mundo presenciou o emblemático caso “Google Spain versus Mario Costeja Gonzáles”, em que o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou a exclusão dos dados de pesquisa do nome de Mario da plataforma Google. 

Num resumo bem resumido, Mario, um advogado espanhol, tinha uma dívida com a seguridade social espanhola, que chegou a resultar na publicação do anúncio de leilão de um apartamento de sua propriedade, na cidade de Barcelona, fato noticiado no jornal La Vanguardia, em 1998.

Porém, o apartamento sequer chegou a ser leiloado, uma vez que a dívida foi quitada antes. A manutenção da referência à publicação associada ao seu nome levou Mario a solicitar a) ao jornal La Vanguardia, em 2009, e b) ao Google Espanha, em 2010, que seu nome não aparecesse mais em nenhum mecanismo de busca. 

No mesmo ano, Mario chegou a protocolar uma reclamação junto à Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD), em desfavor tanto do jornal quanto do Google. A AEPD rejeitou o pedido contra o periódico, mas acatou o pleito de Mario contra o Google, por entender legítimo o pedido de retirada dos dados e da imposição de proibição de que certas informações sejam expostas “quando isso implicar lesão ao direito fundamental de proteção de dados e também à dignidade das pessoas em sentido amplo”.

Direito de retificação e direito ao apagamento

Isso levou o Google Espanhol e a Google Inc. a interporem recursos perante a AEPD, que culminaram em um julgamento histórico do Tribunal de Justiça da União Europeia, uma vez que a matéria envolvia a interpretação da Diretiva 95/46 da União Europeia, que desde 1995 já falava em direito de retificação de dados, direito de apagamento de informações inverídicas, incorretas ou incompletas e, para alguns, no direito de apagar notícias verdadeiras, o qual parte da doutrina considera que estaria implícito no regramento.

Foi apenas em 13 de maio de 2014 que o Tribunal de Justiça da União Europeia, em seu órgão plenário (Grande Sessão), decidiu pela existência de um direito a apagar dados pessoais na internet, que em inglês chama-se “right to erasure”. 

Conforme diz Otávio Luiz Rodrigues Jr., em seu artigo publicado no Portal Consultor Jurídico (Conjur), em 28 de maio de 2014, “diferentemente do que se tem afirmado em alguns textos jornalísticos e jurídicos, mais do que admitir a existência de um direito a ser esquecido (right to be forgotten, embora seja mais popular a expressão “direito ao esquecimento”), o tribunal europeu foi além e passou admitir o senhorio da pessoa sobre seus dados disponíveis na rede. Senhorio não absoluto é verdade, porque depende de uma causa fundada para se obter a eliminação das informações pessoais de um motor de busca. Ainda assim, trata-se de um novo direito, com grandes possibilidades de realização e sem uma extensão delimitada objetivamente”.

Right to erasure” no GDPR

A evolução desse entendimento foi a inclusão expressa do “right to erasure” (em tradução livre, “direito ao apagamento”) no artigo 17 do GDPR – General Data Protection Regulation, criado em 2016 e em vigor em toda a União Europeia desde 2018, o qual chamamos, aqui no Brasil, de Regulamento Geral Europeu sobre a Proteção de Dados (RGPD).

A essa altura acho que já deu pra entender que o “direito ao esquecimento” nada mais é do que o direito a que todas as informações, e qualquer rastro de uma pessoa, vinculado a um determinado fato, seja no mundo virtual ou real, sejam apagados. 

E o “direito ao esquecimento” no Brasil?

Sim, foi preciso fazer toda essa digressão/contextualização, para chegarmos ao Brasil. Indo direto ao ponto, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei Federal n° 13.709/2018, em pleno vigor desde 19 de setembro de 2021) não fala em “direito ao esquecimento”, como o faz o GDPR, e nem ameaça tocar no tema. 

Mas antes de ela ser promulgada, e mesmo depois, as Cortes brasileiras já se manifestaram sobre o assunto em alguns casos emblemáticos (escolhidos por mim, não pretendo esgotar a jurisprudência acerca do tema), que trataram diretamente da questão referente ao “direito ao esquecimento”.

Passo, então, a analisá-los, até chegar no Recurso Extraordinário n° 1.010.606/RJ, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, julgado em fevereiro de 2021, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal (STF) jogou uma pá de cal no tema e entendeu que “o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal”.

Casos envolvendo “o direito ao esquecimento”

Feito o “spoiler” (para adiantar a conclusão e deixar claro que no Brasil “não tem conversa”), falemos primeiro (não será em ordem cronológica) do caso que veio à tona recentemente, em razão do lançamento do documentário da HBO Max intitulado “Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez”.

Caso Daniella Perez

Em 2017, Paula Thomaz, ex-exposa de Guilherme de Pádua e co-autora condenada pelo assassinato de Daniella Perez, ocorrido em 1992, interpôs um recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que pedia o “direito ao esquecimento” que, no caso dela, seria o apagamento de todas as informações sobre o crime e o processo que a associassem a eles (Paula, desde 2013, tentava impedir a veiculação de uma matéria da Revista IstoÉ, de 2012, a respeito do caso).

Paula, que hoje se chama Paula Nogueira Peixoto, é bacharel em Direito, e literalmente almejava uma vida nova, sem nenhum rastro do crime que teria cometido no passado. No entanto, o seu pedido foi negado pelo STJ, em 2020, no Recurso Especial n° 1.736.803, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, em que a) o Ministro citou dois casos paradigmáticos que serão analisados a seguir, os casos da Chacina da Candelária e o caso Aída Curi, destacando que o caso de Paula Thomaz era diferente dos mesmos, uma vez que dessa vez a parte interessada teria sido efetivamente condenada, enquanto nos outros casos “ou se tratou de acusado posteriormente absolvido ou de pleito oriundo da família da vítima”, e b) o Ministro argumentou que, se de um lado (referindo-se à matéria da IstoÉ de 2012), a notícia “destina-se exclusivamente a explorar a vida contemporânea dos autores, dificultando, assim, a superação de episódio traumático”, “é inviável o acolhimento da tese do direito ao esquecimento”. 

Isso porque “muito embora cabível reconhecer e reparar as violações constatadas no presente caso, é inadmissível a fixação, ao veículo de comunicação, de um dever geral de abstenção de publicar futuras reportagens relacionadas com o ato criminoso”. O Ministro prossegue, enfatizando a relevância do caso Daniella Perez, que inclusive mobilizou Glória Perez e outras mães enlutadas a modificarem a Lei de Crimes Hediondos, para incluir o homicídio qualificado no seu rol, de forma que “sob pena de apagamento de trecho significativo não só da história de crimes famosos que compõem a memória coletiva, mas também de ocultação de fato marcante para a evolução legislativa mencionada, não há razões para acolher o pedido concernente à obrigação de não fazer”, uma vez que o interesse coletivo transcenderia “interesses individuais e momentâneos”. O Ministro chegou até mesmo a utilizar a expressão “indevida censura prévia’”, ao se referir ao pleito de Paula Thomaz.

Caso Chacina da Candelária

Passando ao caso histórico da Chacina da Candelária, um dos dois casos paradigmáticos citados pelo Ministro, ele trata, como o próprio nome sugere, de uma verdadeira chacina ocorrida, em 1993, perto da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, em que oito jovens moradores de rua foram assassinados. Em 2006, o programa “Linha Direta”, da Rede Globo, apresentou um documentário sobre o caso, que expunha o nome e a imagem de um serralheiro, que supostamente teria sido apontado como envolvido no crime e, posteriormente, inocentado.

A Rede Globo chegou a entrar com um Recurso Extraordinário (hoje Agravo em Recurso Extraordinário n° 789246), contestando a provável retirada do ar do episódio, mas o processo ficou, como chamamos em Direito, “sobrestado” no STF, ou seja, parado, aguardando a decisão do caso Aída Curi. Por uma questão de lógica, então, passemos a falar do caso Aída Curi, para depois voltarmos ao caso da Chacina da Candelária (que ficou “parado” justamente esperando a decisão do caso Aída Curi).

Caso Aída Curi

Aída Curi, 18 anos, foi vítima de assassinato, com requintes de crueldade (cujos detalhes sórdidos irei omitir, mas adianto que envolvem atentado ao pudor, tentativa de estupro coletivo e, ao fim, o repugnante ato de jogar a jovem do décimo segundo andar do Edifício Nobre, na Avenida Atlântica), em 14 de julho de 1958, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro.

A família enlutada de Aída ingressou com um processo contra a Rede Globo, pelo mesmo motivo do caso da Chacina da Candelária, ou seja, a divulgação do caso e da foto, desta vez da vítima, no Programa “Linha Direta”, veiculado em 2004. Pleiteavam dano moral pela veiculação das imagens da irmã, e também o “direito ao esquecimento”, para que não houvesse mais o uso comercial da imagem de Aída.

O primeiro julgamento marcante foi no STJ, no Recurso Especial n° 1.335.153/RJ, julgado em 10/09/2013, em o relator Ministro Luis Felipe Salomão inicialmente ponderou, em seu voto, que “recentemente (à época) foi aprovado o Enunciado 531 na VI Jornada de Direito Civil, segundo o qual, (sic) a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”, chegando inclusive a dizer que “assim como os condenados que cumpriram pena e os absolvidos que se envolveram em processo-crime, as vítimas de crimes têm direito ao esquecimento se assim desejarem, consistente em não se submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram inesquecíveis feridas”.

No entanto, no caso específico de Aída Curi, o Ministro do STJ entendeu que “o acolhimento do direito ao esquecimento, com a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela lembrança. Isso porque a reportagem foi ao ar 50 anos após o acontecimento. E, além disso, se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aída Curi, sem Aída Curi”.

A questão foi solucionada de uma vez por todas no Recurso Extraordinário mencionado acima, o RE n° 1.010.606/RJ, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, julgado em 11/02/2021, com repercussão geral (Tema 786), ocasião em que, conforme mencionamos acima, o STF jogou uma pá de cal no tema e entendeu que “o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal”.

Repercussão geral

Repercussão geral significa que a decisão passa a valer contra todos (“erga omnes”) e tem efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário, nos termos do art. 927, do Código de Processo Civil (ou seja, todos os juízes, sejam eles estaduais ou federais, são obrigados a decidir da mesma forma).

No entender da Corte, “é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”. O STF chega a citar, em seu acórdão, o paradigmático caso González versus Google Espanha, sobre o qual falamos acima.

Voltando ao caso da Candelária

Por conta dessa decisão “em última instância” (ou seja, não mais passível de Recurso) do STF, a Quarta Turma do STJ chegou até a reexaminar (porém manteve) a decisão inicial do caso da Chacina da Candelária, de 2013 (em que o STJ reconheceu o “direito ao esquecimento” solicitado por um serralheiro acusado de participação no massacre).

Em 03/08/2021, no Recurso Especial n° 1.334.097, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, o STJ entendeu que “o acórdão da Quarta Turma não está em choque com o Tema 786 do STF, pois não guarda relação com essa primeira parte do que foi decidido na repercussão geral, em relação ao direito ao esquecimento, mas sim com a segunda parte da tese: “Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível“.

Tudo isso para dizer que, respondendo à pergunta que dá nome a este artigo, NÃO, não há que se falar em “direito ao esquecimento” no direito brasileiro, seja porque a Lei Geral de Proteção de Dados não faz nenhuma menção a ele, ou porque o Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, entendeu que o “direito ao esquecimento” é incompatível com a Constituição Federal de 1988.

Referências Bibliográficas

BAUER, Luciana & BRANDALISE, Giulianna de Miranda. Direito Hoje | O Direito ao Esquecimento no Ordenamento Jurídico Brasileiro: um Delineamento do Instituto Levando em Consideração os Desafios da Era Virtual, as Contribuições da Jurisprudência Internacional e o Julgamento do RE n°  1.010.6060. Publicado em 22 de março de 2021, no seguinte endereço virtual: https://bit.ly/3Am0b16, consultado em 14/08/2022.

PINHEIRO, Aline. Não Existe Direito ao Esquecimento, diz Advogado da EU. Publicado em 25 de junho de 2013, no site do Conjur, no seguinte endereço virtual: https://bit.ly/3w8sg9v, consultado em 14/08/2022.

RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Direito de Apagar Dados e a Decisão do Tribunal Europeu no Caso Google Espanha. Publicado em 21 de maio de 2014, no site do Conjur, no seguinte endereço virtual: https://bit.ly/3Pr9Szq, consultado em 14/08/2022.

RODRIGUES  JUNIOR, Otavio Luiz. Direito de Apagar Dados e a Decisão do Tribunal Europeu no caso Google (Parte 2). Publicado no site do Conjur, em 28 de maio de 2014, no seguinte endereço virtual: https://bit.ly/3SRXlrT, acessado em 14/08/2022.

WAREEN, Samuel D. & BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy, publicado no Volume IV da Harvard Law Review, em 15 de dezembro de 1890, pp. 193-220. O referido artigo se encontra disponível online no seguinte endereço virtual: https://bit.ly/3PkmV5S, consultado em 14/08/2022. 


Helena Vasconcellos: Fundadora da LGPDTalks®. Privacy Enthusiast. Advogada e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Privacidade e Proteção de Dados desde 2003. Data Protection Officer (DPO) certificada pela EXIN, e em processo de certificação pelo IAPP. Colunista, Professora, Palestrante, Consultora e Voluntária em assuntos relacionados à privacidade e à proteção de dados.

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