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O direito fundamental à privacidade e a rotina das atividades dos cartórios

Professora Euzilanea Miotto Leite*

Não podemos confundir o Direito à privacidade com o direito à proteção de dados. Para exercer o direito à privacidade inicialmente, precisamos proteger o que queremos manter privado, e o que seria isso afinal? O que o titular de dados, o qual cada um de nós é, quer manter como privado?

A complexidade do exercício deste direito se dá pelo fato de que cada indivíduo tem sua própria percepção do que lhe é privado, do que gostaria ou não de compartilhar ou expor. 

Proteger nossos dados é apenas o meio de garantir nosso direito à privacidade.

O quadro abaixo nos permite visualizar que, entre diversos outros termos dispostos na CF/1988, nos foi assegurado o direito à proteção dos nossos dados, destacando-se a escrita “inclusive nos meios digitais”.

Interface gráfica do usuário, Texto, Aplicativo

Descrição gerada automaticamente

Ora, nosso direito à privacidade vai muito além dos dados que compartilhamos nas mídias sociais, nos aplicativos que nos cadastramos para compra de produtos e serviços. Tudo que nos define como pessoa, nosso perfil comportamental, profissional, tudo que nos identifica direta ou indiretamente é considerado dado ao qual temos o direito de ter protegido.

Direito à privacidade nos serviços dos cartórios

Quando tentamos aplicar esse direito à privacidade nos serviços prestados pelos cartórios nos deparamos com a obrigação legal a qual os Oficiais de Registro e Tabeliães devem cumprir no exercício de suas funções, uma vez que os registros são públicos, ou seja, qualquer cidadão tem o direito do acesso por meio de certidões, ao acervo que está sob a tutela do delegatário.

Existem, é claro, alguns pré-requisitos a serem declarados, avaliados e respeitados para a expedição de determinadas certidões ou informações prestadas pelos cartórios e todo esse procedimento para liberação já está previsto em Lei.

Ocorre que, com a Lei Geral de Proteção de Dados, o titular de dados começou a questionar até onde essa publicização de suas informações sob guarda dos cartórios podem ser expostas sem a sua autorização.

Um exemplo prático do que estamos falando é o fato de que um cidadão comum pode requerer em qualquer Registro Civil, tanto fisicamente quanto via plataforma online, a certidão de nascimento, casamento ou óbito em modelo breve relato (simplificado) de qualquer pessoa, bastando apenas ter o nome dela. Saber onde foi registrado facilita a busca, porém não é um impeditivo para o requerimento e expedição, uma vez que, por meio de outros bancos de dados, como mídias sociais por exemplo, conseguimos informações complementares.

Existem as plataformas oficiais para tais solicitações, entre elas a de Registro Civil e a de Registro de Imóveis citadas abaixo.

Registro Civil – Portal Oficial

https://registrocivil.org.br

Registro de Imóveis do Brasil

https://certidao.registrodeimoveis.org.br

E, existem as plataformas privadas que solicitam para o usuário as certidões desejadas. Basta fazer uma busca na internet e o usuário encontrará empresas que prestam este serviço.

Vamos tentar então?

Pegue sua certidão de nascimento ou casamento, leia-a atentamente. De posse dos dados já constantes neste documento, o que mais uma pessoa má intencionada pode obter de informações a seu respeito? Já parou para pensar nisso?

Vamos fazer um teste. Escreva seu nome completo em uma plataforma de busca. O que apareceu para você? Buscando pelo meu nome, apareceu mais de 10 páginas com diversas informações a meu respeito.

Vamos usar o link que leva ao perfil no Facebook, por exemplo. O que está público lá? Ao acessar a sua conta no Facebook, vá em “ver como”, e você terá a perspectiva de como seu perfil é visualizado na rede.  Estando público o local onde você reside, sua cidade de origem, fotos marcando a sua família, um terceiro disporá de dados suficientes para solicitar uma busca da sua certidão pelas plataformas oficiais ou pelas empresas que prestam esse serviço de forma privada.

O que é preciso para solicitar a busca de uma certidão de nascimento? 

Seu nome, nome do seu pai ou mãe, ou de ambos, sua naturalidade, com poucos dados pode-se solicitar a busca nos cartórios de registro civil da cidade em que a pessoa supostamente nasceu, por ter no seu perfil que você é da cidade “tal”.

O cartório pode negar essa busca, mesmo não sendo o titular de dados que requereu? A resposta é NÃO.

O cartório, encontrando este registro, pode expedir a certidão se for solicitada, mesmo o requerente não sendo o próprio registrado? A resposta é SIM.

Interface gráfica do usuário, Texto, Aplicativo

Descrição gerada automaticamente

Dessa forma, quando o registrado questiona o cartório sobre sua certidão de nascimento ou casamento ter sido expedida para um terceiro sem o seu conhecimento, a resposta é simples. O cartório tem o respaldo determinado no Artigo 17 da Lei de Registros Públicos e, para isso, não precisa do seu consentimento para expedir sua certidão.

Notem que até agora falamos apenas sobre a emissão de uma certidão de nascimento, ato comum a qualquer cidadão brasileiro, porém são vários os tipos de serviços notariais e de registro prestados pelos Notários e Registradores ao cidadão através da publicização das informações que constam nos acervos que estão sob sua tutela. Veja a seguir:

Os cartórios aos quais o cidadão tem mais acesso, normalmente, são os de Registro Civil, Tabelionato de Notas, RTDPJ e Protesto.

Armazenamento de dados nos cartórios e direito à privacidade

Vamos fazer uma breve análise de como seus dados podem estar armazenados em todos eles.

Interface gráfica do usuário, Texto, Aplicativo, chat ou mensagem de texto

Descrição gerada automaticamente

Alguns exemplos práticos:

1. Registro Civil 

Sua vida como cidadão começa quando seus pais o registram no cartório de registro civil. Neste mesmo cartório, você se casa, é testemunha em casamento de amigos, registra seus filhos, registra o óbito de algum parente etc.

2. Tabelionato de Notas 

Após anos de trabalho, você adquire um carro e precisa reconhecer sua firma, abrindo seu cartão de assinatura em um Tabelionato de Notas; anos depois compra um imóvel e faz a escritura da compra e venda junto com seu cônjuge se já for casado; emancipa seu filho que vai estudar em outra cidade; com o falecimento de seus pais faz o inventário dos bens etc.

3. RTDPJ 

Compra um terreno não escriturado, mas quer garantir o registro do recibo por perpetuidade e segurança para o caso de extravio ou perda em algum desastre natural, no cartório de Registro de Títulos e Documentos; participante da associação dos moradores do seu bairro, torna-se presidente a instituição sem fins lucrativos e vai até o cartório de Pessoas Jurídicas registrar o estatuto etc.

4. Protesto 

Sua empresa emitiu boletos através do Banco XPTO para um cliente que não efetuou o pagamento dentro do prazo estipulado, logo, o título é enviado para protesto após provocação da parte credora etc.

5. Registro de Imóveis 

Feita a escritura do apartamento adquirido, é no cartório de Registro de Imóveis que a transferência do bem será realizada passando para seu nome após a apresentação da Guia de ITBI quitada no ato do registro; em caso de inventário lavrado extrajudicialmente, após quitada a guia do ITCMD, é no cartório de registro de imóveis que a retirada do nome do cujus é efetivada, sendo feita a partilha do bem, entre o viúvo (meação), e herdeiros.

Notem que é provável que seus dados estejam armazenados em todos os cartórios os quais você realizou algum ato de registro, lavratura ou reconhecimento de firma. As perguntas que devemos fazer é, em quais cartórios tenho dados armazenados? Estão corretos e atualizados? De que forma estão armazenados? Qual garantia eu tenho de que estas informações são compartilhadas apenas com os órgãos estritamente necessários? Quem, dentro do cartório, tem acesso aos meus dados? 

Este tema é deveras estimulante e vasto, visto que, o cidadão, o titular de dados, o usuário dos serviços prestados pelos cartórios têm seus dados coletados, tratados, compartilhados, armazenados para diversas finalidades públicas e privadas.

Este é o primeiro de muitos artigos que pretendo escrever sobre as atividades cartorárias sob a ótica do cidadão comum.


Professora Euzilanea Miotto Leite: Consultora em Privacidade e Proteção de Dados I LGPD em Cartórios e Órgãos Públicos – Consultora, Gestora, Gerente de Projetos| Governança | PDPP | PDPF | PDPE | ISFS | Membro IAPP | Membro ANPPD® Segurança e Governança | Contadora

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