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Dados de crianças e adolescentes: os ativos mais vulneráveis da internet

Luiza Etzberger Tubino*

Cada dia que passa, as atividades cotidianas vão demandando o fornecimento de mais e mais dados pessoais das pessoas que as realizam. Junto a isso, a conectividade passou a integrar o dia a dia, fazendo com que o uso da tecnologia surja como uma ferramenta para comunicação, informação, estudos e diversas outras funcionalidades. Considerando as mais variadas funcionalidades trazidas, aqueles que forem usufruir desses mecanismos precisarão fornecer alguns dados para acessá-los, incluindo crianças e adolescentes expostos a esse meio, de modo que os dados pessoais estão se tornando o ativo mais valioso das pessoas em todo o mundo. 

No Brasil, por exemplo, desde o nascimento, a pessoa precisa compartilhar seus dados pessoais. Os responsáveis pelo recém-nascido devem informar os seus dados e os dados da criança para o hospital e para o cartório, a fim de realizar o registro e cumprir com as demais obrigações da administração pública. 

A Lei Geral de Proteção de Dados, por sua vez, regula o tratamento de dados de crianças e adolescentes de forma especial, destacando no seu artigo 14 a “Seção III- Do Tratamento de Dados Pessoais de Crianças e de Adolescentes”. A legislação prevê que o tratamento desses dados deverão ser realizados no melhor interesse do titular. 

Dados de crianças e adolescentes e o melhor interesse

O melhor interesse é um conceito que vem se aperfeiçoando. Nesses termos, será considerado o significado trazido pela ONU que, basicamente, se divide em três formas de enxergar esse melhor interesse. Ele pode ser visto como um direito fundamental, sendo esta uma consideração primordial, devendo ter aplicação com referência ao artigo nº 227 da Constituição Federal. Além disso, ele também pode ser entendido como um preceito, uma regra, quando estivermos falando de uma norma e, também, como uma regra procedimental, garantindo que a redução do impacto de alguma decisão que possa incidir sobre o menor. 

Ou seja, o interesse da criança e adolescente deve prevalecer sobre qualquer interesse, muitas vezes, inclusive sobre o legítimo interesse e, o agente de tratamento dos dados de crianças e adolescente, nesses moldes, deve levar em conta sempre o melhor interesse do titular. Ocorre que o melhor interesse previsto pela legislação nem sempre é respeitado pelos agentes de tratamento.

Crianças e adolescentes nas redes sociais

Uma pesquisa da TIC Kids Online Brasil de 2020 revelou que 92% das crianças e adolescentes possuem acesso à internet, e 88% destes jovens estão presentes em redes sociais. As crianças e adolescentes têm preferência pelas redes sociais de compartilhamento de conteúdo, como instagram e tiktok, que possuem milhares de contas de menores de idade. 

Uma das situações em que o melhor interesse é desrespeitado é no uso das redes sociais, tendo em vista a facilidade com que as crianças conseguem se registrar, na qualidade de próprias administradoras dessas plataformas, ficando expostas para o mundo inteiro e se deparando com inúmeros anúncios de produtos e serviços e, também, com as chamadas timelines infinitas, um mecanismo altamente prejudicial ao desenvolvimento da saúde dos pequenos. As consequências da exposição da criança às redes sociais ainda não são palpáveis, ainda que ela esteja produzindo uma “imagem positiva” e, efetivamente, usufrua de seus serviços apresentados online. 

Plataformas de ensino remoto e privacidade das crianças

Outra situação alarmante acerca do descaso do agente de tratamento quanto ao “melhor interesse” ocorreu com o uso de diversas plataformas de ensino remoto, principalmente durante o período da pandemia da Covid-19 em que muitas escolas e instituições precisaram se adaptar ao mundo virtual iminentemente. 

A Human Rights Watch identificou que cerca de 89% das plataformas utilizadas para o desenvolvimento do ensino remoto violam a privacidade de crianças e adolescentes através do monitoramento desses usuários no meio digital. Informações como o nome, endereço, localização, modelo de computador ou tablet, bem como as redes sociais em que o menor possui cadastro, assim como sua rede de amigos e conteúdo das aulas, eram compartilhadas pelas plataformas de ensino com o Google, Facebook e outras corretoras de dados.

A maioria das plataformas de ensino recomendadas pelo governo de São Paulo foram apontadas na mencionada pesquisa. Além de não apresentarem política de privacidade e o mínimo cuidado no tratamento de dados de crianças e adolescentes, a pesquisa identificou que muitas delas utilizavam key logging.

Monitoramento do comportamento de crianças e adolescentes

Vale ressaltar que o key logging é um mecanismo que possibilita a plataforma monitorar a tela do usuário, os clicks, as letras selecionadas no teclado e todo o conteúdo eventualmente preenchido na página da web, mesmo que o usuário não tenha “enviado” aquelas informações. Ou seja, caso uma criança, durante o ensino retomo na plataforma, tenha pesquisado em outra aba um produto que deseja consumir, essa plataforma de ensino consegue identificar o que foi pesquisado através da leitura do teclado, mesmo que a criança não tenha realizado a compra. 

Além da Constituição Federal prever a proteção de dados das crianças e adolescentes, essa prática de monitoramento pelas plataformas não só viola esse direito constitucional e a Lei Geral de Proteção de Dados, como utiliza os dados coletados no âmbito educacional para fins comerciais e de publicidade, sem que as crianças possam impedir o mau uso e tratamento de seus dados. 

Ou seja, caso a plataforma identifique um brinquedo pesquisado pela criança por meio do key logging, ela encaminha as informações para corretoras de dados, que farão com que os anúncios desse produto sejam direcionados para esse potencial consumidor, ainda que menor e vulnerável, violando a privacidade desses usuários.

Desafios online e participação de crianças

Inobstante os casos acima, os jornais dos últimos anos estiveram lotados de reportagens sobre crianças que estariam participando de desafios online, incluindo o da Baleia Azul que incentivava o suicídio, nos quais grupos secretos das mais diversas plataformas estariam determinando as ações e cobrando provas de que os desafios haviam sido cumpridos. Esse desafio, infelizmente, levou muitas crianças a tirarem a própria vida apenas pela ingênua vontade de seguir cumprindo os desafios do jogo online sem terem noção dos impactos desses desafios na vida fora das telas. 

Ainda, os menores não têm noção da longevidade do conteúdo que geram online, de modo que se um momento íntimo é publicado na internet, ele pode ficar disponível para sempre, bem como sofrer alterações, reproduções e compartilhamentos. Um dos fatores mais graves dessa exposição, é que, frequentemente, as crianças são manipuladas na internet para gerar esse tipo de conteúdo e o tornar disponível online, sem saber que, muitas vezes, só servem para fetichistas aumentarem os seus portfólios. 

Cenário preocupante sobre os dados de crianças e adolescentes

Tão logo, além da impossibilidade de afastar as crianças e adolescentes das tecnologias existentes, o cenário atual é alarmante, na medida em que nota-se a ausência de cuidados em relação ao tratamento dos dados pessoais destes. Em que pese a legislação e a Constituição Federal preverem que essas informações necessitam de um tratamento mais minucioso, os agentes de tratamento parecem estar agindo contrariamente a essas diretrizes. 

Tendo em vista os casos aqui relatados, assim como inúmeras outras práticas identificáveis no dia a dia, percebe-se que os agentes de tratamento de dados de crianças e adolescentes não apresentam os mínimos cuidados com esse tipo de informação, bem como se valem da vulnerabilidade destes titulares para explorar ferramentas de comércio e publicidade, ainda que mascaradas em outras plataformas, violando o mínimo cuidado com o “melhor interesse” previsto pela LGPD ou eximindo-se da coleta de consentimento dos responsáveis. 

É importante que qualquer descuido referente ao tratamento de dados pessoais, em especial de menores, seja denunciado à ANPD para que as medidas necessárias sejam tomadas e, aos poucos, vá se erradicando o risco de crianças e adolescentes estarem online. 

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Luiza Etzberger: graduada em Direito pela PUC-RS, especializada em Masters of Laws – LLMS e Direito Empresarial pela Fundação Escola Superior do Ministério Público e certificada como Data Protection Officer, atua como advogada na Ad2l Consultoria com foco em proteção de dados.

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